J. Flávio Vieira
“Os heróis são famosos,
mas os santos são anônimos”
Russel Shedd
O heroísmo tem, em geral, uma conotação bélica, uma maneira de incensar soldados que fizeram feitos tidos como inéditos nos campos de batalha. Alguém já disse que nas guerras não existem heróis, apenas sobreviventes. Talvez se tente, com a criação de um mito, justificar a tragédia que joga milhares de jovens a matarem-se entre si, por ideais sombrios e desumanos.
Lembrei-me , imediatamente, dessa constatação, quando, neste 20 de abril, caiu uma guerreira ,de uma causa mais nobre, em um outro campo de batalha. Chamava-se Expedita Maria de Jesus, mas , por esse nome, seria impossível identificá-la. Ficou marcada na história da saúde do Cariri, por um outro epíteto: Edite. Um apelido, de origem no inglês arcaico, que lhe caiu como uma luva e significa “Guerreira Feliz”. Quase uma premonição ! Nascida em Potengi, em 01/06/1926, ela veio trabalhar , por volta de 1950, no Hospital São Francisco de Assis de Crato, o pioneiro da região, administrado pelas Irmãs de Caridade e sob a batuta do Mons. Francisco de Assis Feitosa e depois do Mons. Rocha, Raimundo Augusto e Padre Teodósio. Ali, forjada pelo conhecimento prático, pelo cuidado e pela formação religiosa, Edite se tornou Enfermeira, numa época em que ainda não tinham chegado as primeiras com formação universitária. De personalidade forte, especializou-se em Centro Cirúrgico, convivendo com alguns cirurgiões pioneiros da nossa região: Gesteira, Antonio Macário, Joaquim Fernandes Teles, Maurício Teles, Eberth Teles, Décio Cartaxo, Fábio Esmeraldo, José Ulisses Peixoto. Rápido se tornou uma referência na formação de novas atendentes de Centro Cirúrgico. Disciplinada, sistemática, profissional ao extremo e autoritária, quando necessário, formou gerações de trabalhadores de Centro Cirúrgico. Percebia-se, com facilidade, aqueles que tinham passado por seu crivo e pelo seu ensino. Além do profundo e minucioso conhecimento da sua área, de extrema responsabilidade, Edite somava a tudo isso uma imensa visão humanitária. Solidária, caridosa, cuidadora nata, ela sabia que o toque de Midas da sua atividade se encontrava justamente ali. Trabalhou, incessantemente, por mais de setenta anos, no mesmo hospital. Retirou-se recentemente, já nonagenária, mas em plena vitalidade física e mental. Conviveu, de perto, com outras luminares enfermeiras do seu tempo como Bernadete Gonçalves e Salvina Lucena. Ela me dizia que lembrava de meus pais ainda noivos visitando, no São Francisco, um irmão de minha mãe, em leito de morte. Trabalhou com um tio avô meu, Joaquim Pinheiro Filho, primeiro diretor do hospital, comigo e com meus filhos, médicos. Varou pelo menos quatro gerações.
Quase centenária, nos deixou nestes dias. Visitei-a neste último momento, estava lúcida, esperançosa e loquaz. Impossível entristecer, hoje, diante de uma vida tão plena. Que mais precisaria Edite desejar da vida ! A transcendência tornou-se apenas um mero detalhe na sua trajetória. Longeva, produtiva, solidária, amiga, formadora de vocações. Um desses heróis verdadeiros, daqueles que se banham em laivos de santidade. Viúva, não deixou filhos biológicos. Mas espalhou uma infinidade de rebentos adotivos por esse mundo afora: alunos, colegas, pacientes cuidados e salvos por suas mãos. Merecia um monumento na nossa Faculdade de Medicina ou no pátio do Hospital São Francisco. Com a partida dela inuma-se um fragmento importante da história da Medicina em terras caririenses, aquela em que cuidar, amar, amparar, solidarizar-se, ser empático, sentir o sofrimento do outro como seu, eram parte indissociáveis do Tratamento e da Cura. Esse , talvez, seja a maior herança que ela deixa para os profissionais de saúde que saem à mancheias das faculdades atuais, muito mais bacharéis em saúde do que artistas da arte médica.
Crato, 26/04/24
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