TRIPULANTES DESTA MESMA NAVE
quinta-feira, 6 de setembro de 2007
Há motos e mortos em excesso
Vi trecho de uma partida de vôlei, no Parapan. Todos os participantes jogavam sentados e a rede fora adaptada à altura dos jogadores. Ao final da reportagem, alguns entrevistados falaram de suas deficiências; muitos eram vítimas de acidentes no trânsito, principalmente com motos.
Sempre me emociono com o esforço desses atletas que superam as dificuldades do esporte e as limitações físicas, competindo e ultrapassando marcas. Mas senti revolta, ao invés de emoção, quando vi os jovens mutilados, e soube os motivos porque eles ficaram assim.
Chocados com o último acidente aéreo, em que morreram em torno de duzentas pessoas, nem paramos para refletir sobre as estatísticas de acidentes nas estradas brasileiras, no mês de julho. É pra lá de alarmante. Considerando as péssimas condições de manutenção e sinalização das estradas, a irresponsabilidade dos motoristas, o uso de álcool e drogas, a falta de fiscalização e punições, o número tende a aumentar.
Um dos maiores problemas nas emergências dos hospitais públicos brasileiros é a falta de leitos para traumatizados. Nenhum hospital consegue atender a demanda; ela é sempre o dobro do que o serviço pode oferecer. As estatísticas revelam números alarmantes de acidentes com pessoas que dirigem motos, quase sempre homens. E também revelam a gravidade desses acidentes. Já temos uma legião de mutilados, com invalidez total ou parcial, mulheres e homens produtivos que se tornaram dependentes do Estado, de assistência médica e financeira para tocar a vida.
Chegamos aos oito milhões de motocicletas. O país recebeu a frota, sem nenhum preparo, pois não existem vias adequadas para os motociclistas. Eles disputam as ruas estreitas e esburacadas, e as estradas de via única com pedestres, bicicletas e carros. Nunca tivemos educação para o trânsito: nem os que dirigem as motos, nem os que dirigem ao lado delas, tentando defender-se ou ser mais agressivo. Poucos consideram que a moto representa para a maior parte dos motociclistas um meio de sobrevivência e locomoção.
Ninguém leva a sério os cursos para tirar a primeira carteira ou renová-la. As auto-escolas, que ministram as aulas, se interessam mais em ganhar o dinheiro do ensino obrigatório por lei; e os alunos, em garantir a carteira.
Um antropólogo em visita a uma tribo de índios - isso faz muito tempo - ficou impressionado com o número de homens avariados por conta de quedas de árvores, tentando pegar frutos e ninhos de aves. Alguém que visite um hospital de traumatologia ficará chocado com o número de jovens que ficará sem andar, sem mover um braço, ou com um membro amputado. São as vítimas da violência no trânsito, ou se preferirem, da sobrevivência no trânsito.
A moto é a nova montaria do Brasil. Até no campo ela abalou o prestígio de cavalos, burros e jumentos. No Nordeste, as vaquejadas começam a ser substituídas pelas motojadas, e há quem toque rebanhos de gado escanchado numa motocicleta. Fazer o que? Talvez uma ampla campanha educativa sobre esse transporte. Criar vias adequadas, leis e fiscalização. E cuidar para não virarmos um Afeganistão, onde os russos enterraram minas a cada metro. De vez em quando explode uma. Um acidente traiçoeiro e cruel. E o mundo ganha mais um mutilado.
Ronaldo Correia de Brito é médico e escritor. Escreveu Faca e Livro dos Homens. Assina coluna na revista Continente.
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