TRIPULANTES DESTA MESMA NAVE

quarta-feira, 5 de dezembro de 2007

O TABU E A METÁFORA *


A metáfora é provavelmente a potência mais fértil que o homem possui.
Sua eficiência chega a tocar os confins da dramaturgia e parece um
instrumento de criação que Deus deixou esquecido dentro de uma de suas
criaturas na hora de fazê-la, como o cirurgião distraído que deixa um
instrumento no ventre do operado.
Todas as outras potências nos mantêm inscritos dentro do real, do que
já é. O mais que podemos fazer é somar ou subtrair umas coisas de
outras. Só a metáfora nos facilita a evasão e cria entre as coisas
reais recifes imaginários, florescimento de ilhas sutis.
É verdadeiramente estranha a existência no homem dessa atitude mental
que consiste em suplantar uma coisa por outra, não tanto pelo afã de
chegar a esta como pelo empenho de evitar aquela. A metáfora
escamoteia um objeto mascarando-o com outro, e não teria sentido se
não víssemos sob ela um instinto que induz o homem a evitar
realidades.
Quando recentemente perguntou-se a um psicólogo qual seria a origem da
metáfora, achou-se surpreso que uma de suas raízes está no espírito do
tabu. Houve uma época em que o medo foi a máxima inspiração humana,
uma idade dominada pelo terror cósmico. Durante essa época se sente a
necessidade de evitar certas realidades que, por outro lado, são
ineludíveis. O animal mais freqüente no país, e de que depende o
sustento, adquire um prestígio sagrado. Essa consagração traz consigo
a idéia de que não se pode tocá-lo com as mãos. O que faz então, para
comer, o índio Lillooet? Põe-se de cócoras e cruza as mãos sob as
nádegas. Deste modo pode comer, porque as mãos sob as nádegas são
metaforicamente pés. Eis aqui um tropo de ação, uma ação elementar
prévia à imagem verbal e que se origina no afã de evitar a realidade.
E, como a palavra é para o homem primitivo um pouco a própria coisa
nomeada, sobrevém o mister de não nomear o objeto tremendo sobre o
qual recaiu o tabu. Daí que se designe com o nome de outra coisa,
louvando-o em forma larvada e sub-reptícia. Assim, o polinésio, que
não deve nomear nada do que pertence ao rei, quando vê arderem as
tochas em seu palácio-cabana, tem que dizer: "O raio arde nas nuvens
do céu". Eis aqui a elusão metafórica.
Obtido nessa forma de tabu, o instrumento metafórico pode logo ser
empregado com os fins mais diversos. Um deles, o que predominou na
poesia, era enobrecer o objeto real. Usava-se da imagem similar com
intenção decorativa, para ornar e recamar a realidade amada. Seria
curioso inquirir se na nova inspiração poética, ao fazer-se da
metáfora substância e não ornamento, cabe notar um raro predomínio da
imagem denigrante que, em vez de enobrecer e realçar, rebaixa e vexa a
pobre realidade. Há pouco li num poeta jovem que o raio é um metro de
carpinteiro e as árvores infolies do inverno vassouras para varrer o
céu. A arma lírica se resolve contra as coisas naturais e as vulnera
ou assassina.

ORTEGA Y GASSET, José. In: "A desumanização da arte". 5 e. São Paulo:
Cortez, 2005.


*Texto Sensacional do Ortega, enviado pelo Prof Glauco Lobo

Um comentário:

Marcos Vinícius Leonel disse...

É verdade que a consciência literária tem modificado ao longo do tempo as intenções primeiras da utilização dos tropos na construção poética. Isso é próprio da história e do tempo. O conceito epicizante, que engloba inclusive a lírica contemporânea, tanto adorna o discurso com metáforas, como também provoca desdobramentos do signo, modificando o sintagma, criando uma nova imagética, em busca de novas expressões, que facilitem o convívio ou apenas legitimem o cotidiano, o ser e o estar no mundo em pleno século XXI. São saídas essenciais para o fazer literário, que não deve ficar refém nem da práxis teórica e nem da inspiração, como planos de sagração da ciência ou da palavra revelada. Inovar é preciso.