CHAVE DE GRIFO
J. FLÁVIO
“Chave de Grifo” se tornara um dos caminhoneiros mais conhecidos em Matozinho. Espírito irrequieto, começara transportando passageiros numa Rural velha de Matozinho para Bertioga , Serrinha dos Nicodemos e adjacências. Depois, com a efervescência crescente das romarias em Bertioga, juntou um pé-de-meia e comprou um caminhão usado, transformando-o num “Misto” e se estabeleceu, definitivamente , no ramo de transportes na região. Viradas muitas folhinhas do calendário, preferiu ampliar suas atividades, deixando o Misto aos cuidados de um irmão e comprando o sonho da sua vida: um caminhão maior, novinho em folha. No pára-choque lia-se a famosa frase : “Deus me Guia” e no largo pára-lama traseiro uma filosofia mais profana : “Viúva é como madeira verde : chora mas pega fogo”.
Passou a viajar para a capital, levando produtos agrícolas e trazendo carretos vários que abasteciam o comércio local , além de encomendas particulares dos grã-finos da vila. Fazia , assim, o papel de um mascate agora modernizado e motorizado. Sempre que chegava a Matozinho, era uma festa, a buzina do Ford velho de guerra se ouvia à distância e os matozenses se aglomeravam, ao redor do veículo, esperando pelas últimas novidades de consumo que vinham da capital. Adorava aquela vida itinerante, a cada dia uma pousada diferente, a cada instante, uma nova paisagem. Personagens variados entravam no seu destino a cada momento e, em cada travessa, existia sempre a possibilidade de um rabo de saia para o namoro descomplicado e fortuito. Temia, assim, o futuro e a possibilidade de aposentadoria, não se imaginava com condições de viver sem percorrer a estrada que sempre se oferecia, lúbrica, à sua frente. Ao longos dos anos e de muitas viagens passara a conhecer o país como poucos. Não apenas aqueles pontos visitados pelos turistas, mas as cidades e vilas com toda sua diversidade: a riqueza no anverso e a marginália no reverso : pequenas ilhas de felicidade circundadas por um oceano de anseios, receios e saracoteios.
“Chave de Grifo” , agora vivendo da sua mini-transportadora, mesmo assim não pode deixar o ramo de carregar passageiros. É que no interior os meios de transportes sempre foram muito precários. Ajudava os caboclos que precisavam se deslocar para cidades e logradouros que faziam parte do seu trajeto e, por outro lado, ainda juntava uma laminha para ajudar no Diesel. Claro que não podia escolher muito a clientela , até porque não tinha condições de exigir curriculum vitae de todo mundo que lhe acenasse. Aí juntava tudo quanto é de sarrabulho : matuto liso que só informava seu estado de eliseu, no fim da viagem; mulher buchuda, com menino pelas goelas e que vez por outra resolvia fazer o velho Ford de maternidade; menino chorão e aperreador; caboclo levando junto porco, galinha, peba,a tatu, peru, jerimum, mocó, teju, gaiola de passarinho e espingarda soca-soca; pistoleiro se escafedendo do cerco da polícia; cabra carregando filha dos outros pra forçar casamento na polícia. O pior objeto de transporte, no entanto, dizia “Chave de Grifo” , é o tal do pau-d´água, o bêbado aporrinhador. Conversa besteira, cospe todo mundo, quer parar em tudo quanto é bodega e ainda bota tiú pra lambuzar todo o veículo.
Pois é de um papudinho destes mesmos que nós vamos falar. Tardizinha , o Ford gemendo, subindo a Serra da Jurumenha, de repente, “Chave de Grifo” vê , adiante, na estrada carroçável, alguém acenando, pedindo carona. Com a pouca visibilidade do lusco-fusco, nosso motorista pára e dá entrada ao passageiro que faz questão de ir na boléia. Só então “Grifo” percebe que se trata de um bêbado, muito pelo bafo e um tanto pelo itinerário da viagem proposta:
---“Vá adiante, motorista, dinheiro aqui é o que não falta, quando der na telha eu desço.
Ràpidamente, do alto da sua experiência rodoviária, “Chave de Grifo” percebeu a enrascada em que estava entrando. O diabo é que era daqueles bêbados metidos a brabo, dizia a todo instante que era valente e que estava doido, doido, para arranjar um cabra pra brigar:
--- Já matei mais de dez, comigo não tem perrepes. Só queria que aparecesse um sujeito que quisesse brigar comigo. Ia levar uma surra tão grande que o que sobrasse dele, juntando, num dava pra fazer nem um calunga !
A ladainha continou, em loop, a radiola velha parece que tinha enganchado a agulha. “Chave de Grifo” já não agüentava mais o converseiro sem fim, daquele bêbado chato metido a cavalo do cão. De repente, nosso motorista divisou, distante na estrada, vindo na mesma direção do veículo, um personagem que parecia arrancado de um quadro de Portinari. Um sujeitinho atarracado, pletórico, cara feia, destas boas pra se fazer cobrança. Trazia ainda , nas costas uma foice que reluzia aos últimos raios de sol no horizonte. Parou o caminhão quando emparelhou com o sujeito e percebeu, claramente, aquela cara de invocado. Perguntou de chofre:
--- Meu amigo, você é molenga, covarde ou tem alguma coragem ainda por aí ?
O baixinho fuzilou-o com o olhar e respondeu urrando:
--- Como é, seu filho da puta, eu tou aqui fulo da vida, venho da roça e a maracanã comeu meu milho todo, tou doido para entrar num estrupício. Quer se acabar comigo, seu engraçadinho ?
--- Não, meu amigo, atacou “Chave”, não é comigo não, é este cabra que ta aqui do meu lado. Quando ele viu você de longe já foi dizendo que o senhor é viado e corno e que eu parasse para ele lhe dar um corretivo para vê se o senhor tomava tento nesta vida !
O invocado, bufando, tirou imediatamente a foice do ombro e gritou:
--- Pois mande ele aqui, já-já, preu ver se ele tem três cunhões , vou fazer picadinho deste filho da puta. Desce logo, seu incréu !
“Chave de Grifo” fitou então um bêbado todo trêmulo e incitou:
--- Pronto ! , taí o que você queria, você num tava doido pra achar um cabra pra brigar ?
O bêbado já quase bom da carraspana, frente a ameaça, solfejou:
---- Não meu senhor, pere aí, eu num sei brigar avexado não...
J. FLÁVIO
“Chave de Grifo” se tornara um dos caminhoneiros mais conhecidos em Matozinho. Espírito irrequieto, começara transportando passageiros numa Rural velha de Matozinho para Bertioga , Serrinha dos Nicodemos e adjacências. Depois, com a efervescência crescente das romarias em Bertioga, juntou um pé-de-meia e comprou um caminhão usado, transformando-o num “Misto” e se estabeleceu, definitivamente , no ramo de transportes na região. Viradas muitas folhinhas do calendário, preferiu ampliar suas atividades, deixando o Misto aos cuidados de um irmão e comprando o sonho da sua vida: um caminhão maior, novinho em folha. No pára-choque lia-se a famosa frase : “Deus me Guia” e no largo pára-lama traseiro uma filosofia mais profana : “Viúva é como madeira verde : chora mas pega fogo”.
Passou a viajar para a capital, levando produtos agrícolas e trazendo carretos vários que abasteciam o comércio local , além de encomendas particulares dos grã-finos da vila. Fazia , assim, o papel de um mascate agora modernizado e motorizado. Sempre que chegava a Matozinho, era uma festa, a buzina do Ford velho de guerra se ouvia à distância e os matozenses se aglomeravam, ao redor do veículo, esperando pelas últimas novidades de consumo que vinham da capital. Adorava aquela vida itinerante, a cada dia uma pousada diferente, a cada instante, uma nova paisagem. Personagens variados entravam no seu destino a cada momento e, em cada travessa, existia sempre a possibilidade de um rabo de saia para o namoro descomplicado e fortuito. Temia, assim, o futuro e a possibilidade de aposentadoria, não se imaginava com condições de viver sem percorrer a estrada que sempre se oferecia, lúbrica, à sua frente. Ao longos dos anos e de muitas viagens passara a conhecer o país como poucos. Não apenas aqueles pontos visitados pelos turistas, mas as cidades e vilas com toda sua diversidade: a riqueza no anverso e a marginália no reverso : pequenas ilhas de felicidade circundadas por um oceano de anseios, receios e saracoteios.
“Chave de Grifo” , agora vivendo da sua mini-transportadora, mesmo assim não pode deixar o ramo de carregar passageiros. É que no interior os meios de transportes sempre foram muito precários. Ajudava os caboclos que precisavam se deslocar para cidades e logradouros que faziam parte do seu trajeto e, por outro lado, ainda juntava uma laminha para ajudar no Diesel. Claro que não podia escolher muito a clientela , até porque não tinha condições de exigir curriculum vitae de todo mundo que lhe acenasse. Aí juntava tudo quanto é de sarrabulho : matuto liso que só informava seu estado de eliseu, no fim da viagem; mulher buchuda, com menino pelas goelas e que vez por outra resolvia fazer o velho Ford de maternidade; menino chorão e aperreador; caboclo levando junto porco, galinha, peba,a tatu, peru, jerimum, mocó, teju, gaiola de passarinho e espingarda soca-soca; pistoleiro se escafedendo do cerco da polícia; cabra carregando filha dos outros pra forçar casamento na polícia. O pior objeto de transporte, no entanto, dizia “Chave de Grifo” , é o tal do pau-d´água, o bêbado aporrinhador. Conversa besteira, cospe todo mundo, quer parar em tudo quanto é bodega e ainda bota tiú pra lambuzar todo o veículo.
Pois é de um papudinho destes mesmos que nós vamos falar. Tardizinha , o Ford gemendo, subindo a Serra da Jurumenha, de repente, “Chave de Grifo” vê , adiante, na estrada carroçável, alguém acenando, pedindo carona. Com a pouca visibilidade do lusco-fusco, nosso motorista pára e dá entrada ao passageiro que faz questão de ir na boléia. Só então “Grifo” percebe que se trata de um bêbado, muito pelo bafo e um tanto pelo itinerário da viagem proposta:
---“Vá adiante, motorista, dinheiro aqui é o que não falta, quando der na telha eu desço.
Ràpidamente, do alto da sua experiência rodoviária, “Chave de Grifo” percebeu a enrascada em que estava entrando. O diabo é que era daqueles bêbados metidos a brabo, dizia a todo instante que era valente e que estava doido, doido, para arranjar um cabra pra brigar:
--- Já matei mais de dez, comigo não tem perrepes. Só queria que aparecesse um sujeito que quisesse brigar comigo. Ia levar uma surra tão grande que o que sobrasse dele, juntando, num dava pra fazer nem um calunga !
A ladainha continou, em loop, a radiola velha parece que tinha enganchado a agulha. “Chave de Grifo” já não agüentava mais o converseiro sem fim, daquele bêbado chato metido a cavalo do cão. De repente, nosso motorista divisou, distante na estrada, vindo na mesma direção do veículo, um personagem que parecia arrancado de um quadro de Portinari. Um sujeitinho atarracado, pletórico, cara feia, destas boas pra se fazer cobrança. Trazia ainda , nas costas uma foice que reluzia aos últimos raios de sol no horizonte. Parou o caminhão quando emparelhou com o sujeito e percebeu, claramente, aquela cara de invocado. Perguntou de chofre:
--- Meu amigo, você é molenga, covarde ou tem alguma coragem ainda por aí ?
O baixinho fuzilou-o com o olhar e respondeu urrando:
--- Como é, seu filho da puta, eu tou aqui fulo da vida, venho da roça e a maracanã comeu meu milho todo, tou doido para entrar num estrupício. Quer se acabar comigo, seu engraçadinho ?
--- Não, meu amigo, atacou “Chave”, não é comigo não, é este cabra que ta aqui do meu lado. Quando ele viu você de longe já foi dizendo que o senhor é viado e corno e que eu parasse para ele lhe dar um corretivo para vê se o senhor tomava tento nesta vida !
O invocado, bufando, tirou imediatamente a foice do ombro e gritou:
--- Pois mande ele aqui, já-já, preu ver se ele tem três cunhões , vou fazer picadinho deste filho da puta. Desce logo, seu incréu !
“Chave de Grifo” fitou então um bêbado todo trêmulo e incitou:
--- Pronto ! , taí o que você queria, você num tava doido pra achar um cabra pra brigar ?
O bêbado já quase bom da carraspana, frente a ameaça, solfejou:
---- Não meu senhor, pere aí, eu num sei brigar avexado não...
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