A Música das palavras
Daniel Piza (Blog do estadão)
Toda vez que o programa ia começar, a redatora da Rádio Ministério se ajeitava na cadeira do estúdio, lia as palavras de apresentação e se concentrava como nunca naquilo que ia escutar. Eram os anos 40 e havia três coisas que ela apreciava mais que tudo naquele trabalho na emissora pública, para a qual adaptava clássicos da literatura: a biblioteca, a discoteca (o acervo de discos, não uma pista de dança) e esse programa que anunciava com ansiedade toda semana. A palavra então passava para a pianista Magdalena Tagliaferro, grande dama do teclado brasileiro, que iniciava uma de suas “aulas magnas” sobre música. Ela tocava uma frase musical e em seguida explicava: “Isto é barroco” – ou “Isto é romântico” ou “Isto é clássico”. Ouvindo que uma mesma sequência de notas podia assumir estilos tão diferentes, coloridos tão ricos, a jovem radialista talvez não soubesse, mas estava tendo a lição mais importante da sua vida.
Foi antes de se tornar atriz, portanto, que Fernanda Montenegro passou a existir. E isto não é metáfora. O pseudônimo foi adotado por Arlette Pinheiro Esteves da Silva, nascida em 16 de outubro de 1929, para assinar seus textos e suas locuções na rádio do MEC, não para atuar no palco. Ou seja: a grande dama do teatro brasileiro foi batizada e criada naquele ambiente de literatura e música, onde trabalhou durante dez anos. Ironicamente, a mãe havia escolhido o nome Arlette em homenagem a uma atriz francesa. Não deixa de ser significativo que, no ano em que completa 80 anos, Fernanda esteja brilhando nos palcos com uma peça em que incorpora a escritora Simone de Beauvoir e lê o texto de Viver sem Tempos Mortos com um ouvido absoluto para a música das palavras.
A montagem – que já esteve em São Paulo, numa temporada que se esgotou antes da estreia, está no Rio e volta em novembro a São Paulo – privilegia justamente a emissão verbal, a elocução da atriz, seu talento único como “diseuse”. O diretor e a cenógrafa, Felipe Hirsch e Daniela Thomas, só fizeram o mínimo necessário para imitar o gesto de Michelangelo depois de concluir Moisés e dizer: “Parla!” E Fernanda fala durante uma hora, atravessando 23 páginas, sem sair da cadeira no centro do palco, vestida num elegante e simplicíssimo duo de calça preta e camisa branca. O tronco ereto só permite o movimento da cabeça e dos braços. O texto não tem um conflito dramático; é uma colagem de lembranças e pensamentos de Simone com foco em sua relação com Jean-Paul Sartre. Tampouco se detém muito em feminismo ou erotismo. Tudo é contido, controlado – e, no entanto, a plateia toda se envolve intensamente com cada uma de suas palavras, com sua história, com o retrato de uma época. Que outra atriz teria o poder de transformar esse maço de prosa em um acontecimento cênico, sem se derramar nem declamar em nenhuma passagem? “Isto é moderno”, diria Magdalena Tagliaferro.
Fernanda Montenegro está num hotel em Pinheiros, zona oeste de São Paulo (a menos de 500 metros da livraria Fnac), e nos recebe no saguão com uma roupa de ginástica cinza sobre camisa branca, óculos de aros grossos e cabelos presos. Como as pessoas verdadeiramente elegantes, ela não precisa estar produzida para nos fazer associar o adjetivo. Ela é elegante – e a prova de que elegância não é uma questão de berço, mas de senso. Tem senso de medida, até mesmo para ser desmedida quando preciso, na vida ou na representação. Também não gosta muito dessa história de ser chamada de “primeira dama” ou coisa parecida. “Há muitas primeiras-damas no teatro brasileiro”, diz, ciente de que suas colegas Bibi Ferreira, Nathalia Timberg, Cleide Yáconis e algumas outras seguem na ativa. Evita todo o tempo qualquer sugestão de vedetismo ou divismo. “Esse é um resquício dos tempos românticos.” Mas foi com elegância que essa atriz de quase 60 anos de carreira se tornou símbolo de sua classe.
“O que me interessa, o que me move é o ofício, é o artesanato do que faço”, continua, recusando o termo “profissão”. Ainda redatora de rádio, ela foi atraída para a carreira de atriz pelo Teatro dos Estudantes, de Paschoal Carlos Magno, um grupo voltado para o público universitário, com a preocupação de fazer o repertório dos clássicos, de formar gerações e forjar um modo brasileiro de interpretar a tradição. Sua estréia foi em 1950, com uma comédia francesa chamada Alegres Canções nas Montanhas, em que contracenou com seu futuro marido da vida inteira, Fernando Torres. No ano seguinte começou a trabalhar na TV Tupi, onde faria centenas de “teleteatros” em dez anos, num ritmo assombroso. Em 1952, premiada como revelação, já estava no fulcro do movimento teatral do período: no Teatro Brasileiro de Comédia. Ali, ao lado de Cacilda Becker, Sergio Cardoso, Paulo Autran e os demais, dirigidos por diretores estrangeiros como Gianni Ratto, Ziembinski e Adolfo Celi, ela participaria da invenção do teatro moderno brasileiro.
Antes, porém, Fernanda faz questão de citar Dulcina de Morais, sua maior referência, pelo “timing de comédia” e “presença avassaladora”, pelas inovações no uso de cenário e iluminação, pelo trabalho com autores como Eugene O’Neill e Bernard Shaw, pelo papel como educadora. Também marcante para Fernanda foi o Hamlet de Sergio Cardoso, que viu nada menos que 18 vezes. “Foi uma epidemia.” Sobre Cacilda Becker, com quem contracenou uma vez e apenas viu outras duas, resume: “Ela tinha uma luz, uma chama, um senso poético da cena.” Do cinema viriam suas outras influências: Katherine Hepburn, Hannah Schygulla (encarnação da frase de Bergman: “Interpretar é muito difícil porque é muito simples”), Laurence Olivier, Gérard Phillipe, Simone Signoret e Anna Magnani, esta pelo trabalho no neorrealismo italiano (“Vimos como era possível atuar com a cara que Deus nos deu”). Mas o cinema só viria nos anos 60.
Aqueles eram tempos de formação. A música sempre faria parte de sua vida, embora não saiba tocar nenhum instrumento (“Só tenho um ouvido musical”), e a literatura também, mesmo com o fim da carreira de redatora em 1954. As paixões por Thomas Mann, Thomas Hardy, Dostoievski, Turgueniev, Stendhal e Machado de Assis já estavam consolidadas. Mais tarde, com amigos como Antunes Filho, Flávio Rangel, Manoel Carlos e Bento Prado Jr. (“eu era a única mulher”), formou um grupo de leituras e foi além, descobrindo inclusive O Segundo Sexo, de Simone, que havia sido publicado na França em 1949. É difícil pensar em outra atriz no Brasil que tenha lido tanto. E que tenha trabalhado tanto com novos autores brasileiros: além de Antunes e Rangel, nomes como Jorge de Andrade e Gianfrancesco Guarnieri.
O palco brasileiro dos anos 50 era ainda dividido entre o que Fernanda chama de “teatro do convívio”, como o teatro de revistas, e um teatro “mais aristocrático” como o do TBC – ou como outro grupo que ela compunha, o Teatro dos Sete, que levava Cervantes, Molière ou Martins Pena. E foi dessa confluência inesperada que ela moldou seu estilo, certa maneira descontraída de representar com rigor, e aprendeu ali a fazer “de um jeito não literário um texto literário”. Mas não foi rápido. “É preciso fazer durante uns dez anos até começar realmente a fazer”, acentua. “Tem que bater o couro muitas vezes até fazer o sapato e então costurar o sapato e fazê-lo caber no pé.” Felipe Hirsch, por sinal, contou que Fernanda acordava no meio da noite para rever a inflexão de uma frase de Simone.
Três pessoas foram fundamentais em sua juventude. Henriette Morineau aconselhou Fernanda e Fernando a não irem para a Inglaterra se pretendiam voltar, para não viciar nos pesos de uma tradição e de outro idioma. Gianni Ratto foi sua “escola”, o diretor que cobrava um domínio completo dos recursos e das marcações. E Adolfo Celi a libertou quando encenaram juntos a comédia Mary Mary, em 1963. “Saí da gaiola naquele momento”, diz Fernanda, lembrando que primeiro é preciso conhecer a técnica para depois não ser escrava dela. “Há atores que partem do exterior da personagem. Olivier dizia que no teatro às vezes o hábito faz o monge, sim. Mas eu nunca parti do exterior. Sempre busquei um estado emocional.” Pelo mesmo motivo, ela diz que a melhor apresentação de sua peça é nos domingos à tarde, quando já fez duas sessões na semana.
Termos em francês são comuns no discurso de Fernanda. Ao descrever Simone, que viu em documentários, ela usa o termo “soignée”, que ajuda a explicar sua conduta na montagem. “Ela estava sempre bem arrumada, bem postada.” Mas essa semelhança visual é acessória em sua interpretação; vem em segundo plano. O mais importante é trabalhar “a tônica das frases”, mesmo quando o texto pede uma “délivrance” (eis outro) mais espontânea, mais coloquial. Como exemplo, Fernanda cita uma das peças que sonhou fazer e não fez em sua carreira, Solness, o Construtor, de Ibsen (como nunca fez Shakespeare ou o antigo projeto de encenar Clarice Lispector): “Quando Hilda diz ‘Eu vim buscar meus cavalos brancos’, você sente que é um momento importante. Não dá para falar essa frase como se fosse mais uma.”
Algo parecido ela diz sobre o trabalho com Nelson Rodrigues, talvez a maior marca de sua carreira. Em 1964, fez A Falecida no cinema, com o jovem Leon Hirszman na direção. Foi para ela que Nelson escreveu Toda Nudez Será Castigada (que terminou sendo feita por Cleide Yáconis, pois Fernanda estava com gravidez complicada) e A Serpente (que não fez porque colhendo o sucesso de quatro anos em cartaz de É..., peça de seu outro grande amigo e parceiro, Millôr Fernandes). E é dele que ela cita duas falas: em Beijo no Asfalto, quando o ator diz apenas “água linda”, em vez de pedir o copo antes e depois elogiar o frescor; e em Viúva porém Honesta, quando a protagonista é convidada a sentar e diz “Viúva não senta”. Naquele momento, diz Fernanda, “sabemos que há uma estranheza”. Para ela, ninguém no Brasil escreveu teatro como Nelson, com essa capacidade de síntese oral que “não precisa de mais nada”.
Isso tudo não significa que o aspecto físico não tenha importância. De Fernanda um crítico disse que tem “um rosto de borracha”, crítico que ela mesma identifica: Leo Vitor, do Jornal do Brasil. Outro texto que recorda – ela que foi analisada e elogiada por Décio de Almeida Prado, Sábato Magaldi, Paulo Francis ou Barbara Heliodora – é o de Alberto D’aversa, do Diário de S.Paulo, que a descreveu como “a visibilidade do feminino brasileiro”. Fernanda gosta de se ver assim, como produto de todas as mulheres que representou, e não só brasileiras, em peças comoDona Doida (com poemas de Adélia Prado), Fedra, A Gaivota, As Lágrimas Amargas de Petra Von Kant, A Moratória, Eles Não Usam Black-Tie, no cinema (Central do Brasil) e na TV (Guerra dos Sexos).
É uma carreira variada, que vai da comédia à tragédia, e essa variação não apenas sua voz permite, mas também seu rosto. Sem ser caracteristicamente bonito ou engraçado, impositivo ou vulnerável, ele é um rosto que pode ser tudo isso graças aos dois olhos grandes e castanhos, ligeiramente glaucos, que podem se encher de ternura com um leve movimento das pálpebras para baixo ou se desesperar ao se abrir como se fossem tomar a face toda. Podem conter a gama completa dos sentimentos femininos, da doçura à ira, da inocência à dissimulação, e passar de um extremo a outro num instante sutil. “Não sei como sou no palco, eu não me vejo”, diz. O espectador sabe: Fernanda dá a impressão de que pode ir para qualquer lugar a qualquer momento, mas que está no único lugar e momento em que deveria estar. Suas expressões vão de A a Z, mas ela sempre abre o dicionário na letra certa. No barroquismo das atuações brasileiras, seu estilo é uma aula de comoção pela contenção.
“Teatro tem um pé no sagrado, mas eu procuro não sacralizá-lo”, diz Fernanda, que conta ter chorado “abraçada sob o sol” com o marido quando visitou um teatro grego na terra natal de sua família, na Sardenha, “pois foi de lá que todos viemos”. Também diz que fica “doente do projeto” quando adota um; seu mote é “fazer com integridade e inspiração”. Mas o que diz de sua própria sacralização, do fato de que toda candidata a atriz citá-la como modelo? “Não acredito em unanimidade. Não me considero acima da crítica, mas digamos que depois de tanto tempo eu esteja mais ou menos redimida. Resisto há 60 anos, então acho que há uma admiração por essa resistência. E a platéia felizmente se renova.”
Crítica da falta de reflexão nos tempos atuais, da cultura presa à verba pública (“Do Bumba-meu-boi no Maranhão à Parada Gay em São Paulo, tudo está nas mãos do Estado”) e do teatro que oscila entre experimental e comercial, optando sempre pelo lado mais fácil ao adaptar um Shakespeare, Fernanda aceita as mudanças com serenidade. Diz que hoje os jovens são mais livres, embora não saiba “se são mais felizes”, elogia a independência das mulheres, inclusive para mergulhar na maternidade como Simone não mergulhou (“Ela dizia ser um sentimento cultural, mas foi maternal com os amantes mais jovens que teve”), e celebra avanços como direitos homossexuais e tecnologia médica. Lembra os pais (“Minha mãe era uma loba romana, invasiva e protetora; meu pai era mais introjetado”), a origem “não burguesa, batalhadora” no subúrbio carioca (o pai era modelador mecânico e lhe dizia sempre que “tudo tem uma ciência”), as ambições juvenis (“Mas nunca imaginei ser o que sou”).
Aos 80, ela parece lidar com a vida como lida com as palavras, escolhendo tônicas e pausas sem achar que é dona do tempo. Avessa a engajamentos partidários (“Só me manifesto em momentos vitais”) e estrelismos de qualquer tipo (“Não existe teatro sem o outro”), ela, como o compositor Chico Buarque ou o jogador Zico, tem uma imagem pública digna, justamente por saber dosar a privacidade e a responsabilidade. Como em seu desempenho como Simone, as pessoas podem achar que é fácil ser Fernanda Montenegro, mas ela sabe como é difícil. Sua vida nunca teve tempos mortos porque ela nunca parou de lutar. Ela veio buscar seus cavalos brancos e os levou para sempre consigo.
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