O silêncio da salinha era quebrado apenas pelos delicados movimentos dos dedos na lã e pelo ruflar invisível das asas de um beija-flor que assediava sensualmente uma rosa-menina que pendia de um jarro da janela. A mântrica repetição dos movimentos da agulha e da cadeira como que hipnotizava a velhinha. E o sono desenrolou-se como se preso estivesse ao novelo de lã. A cabeça prateada, empurrada pelo sono, recostou-se sobre um dos ombros e a agulha tombou sobre o projeto da colcha.
De repente, o silêncio da sala perturbou-se com um outro som.Um guri nu na inocência dos seus oito meses engatinha pela sala e se aproxima da cadeira da vovó. Ali encontra o fio de lã que ligava , umbilicalmente, o novelo ao promissor início de colcha. Enrosca as mãozinhas no fio e tenta escalar a altura da cadeira, como se se tratasse das tranças de Rapunzel.Mal percebe que o fio não tem sustentação e que à medida que segue puxando, vai, pouco a pouco, desfazendo o trabalho de tantos e tantos meses da avó. Quando desperta, a velhinha atônita se depara com o netinho sorrindo enroscado numa rede que minutos antes havia desenhado um jardim , na colcha que tão cuidadosamente vinha sendo construída.
Na sala só o beija-flor pareceu entender a profundidade da cena que acabara de presenciar. No tear da vida é exatamente assim. O novo sempre é tecido pelas mãos do velho e mal a colcha começa a se desenhar principia o desfazer-se A obra do homem, por mais linda e promissora que seja , tecida com inspiração e transpiração , árdua e demoradamente, se desfaz num fugaz instante . O tempo, engatinhando como um menino, desfaz o crochê da vida continuamente : os desenhos das ilusões, o bordado das esperanças, o macramé do vivido e do por viver. Perplexos o beija-flor e o menino como se perguntam: E o que fazer com este fio de eternidade a atar, indelevelmente, o novelo do desejo à esfacelada colcha do sonho ?
J. Flávio Vieira
3 comentários:
Poesia,
meu camarada -
Poesia pura.
Um forte e admirável abraço.
Seu texto,um belo novelo bem desfiado.
Prazer lê-lo.
Obrigado à sensibilidade do Domingos e da Marta pela paciência em ler o texto e por tê-lo apreciado. Com leitores tão especiais aumenta muito a responsabilidade em escrever.
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