TRIPULANTES DESTA MESMA NAVE

quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

L´état c´est moi


Genealogia é coisa de gente importante e abastada. O cabra melhora de vida, toma ares de emergente e, de pronto, vai escarafunchar as origens. No fundo, quer mostrar que se trata de um PO, puro de origem, que sua boa condição atual não foi um simples acaso, um mero golpe de sorte. “Meu bisavô foi herói na Guerra do Paraguai !” “ Meu tataravô herdou todas as terras onde hoje se situa a cidade de Matozinho!” Como, entre nós, mais cedo ou mais tarde , todas as linhagens chegam invariavelmente na Taba ou na Senzala, há que se usar inúmeros artifícios no intuito de manter a pureza e nobreza dos ascendentes. Como índio e escravo não possuíam documentos, vão sendo apagados das árvores genealógicas, citados apenas pelo primeiro nome e, no geral, se lhes dão profissões tidas como mais nobiliárquicas: proprietário rural, empresário,comerciante etc. Desde a Colônia, os trabalhos manuais sempre foram tidos como coisa de gentinha, os artesãos, assim, tornam-se fantasmas nestas árvores, frutos que se vão encobrindo por trás das ramagens dos anos. A pobreza pode até ser divulgada e enaltecida desde que o pé rapado, no transcorrer da existência, tenha dado a volta por cima e se tornado um herói, um político poderoso , um artista, uma pessoa famosa. A coisa é tão séria que os espiritualistas buscam, também, construir sua Árvore Genealógica da pré-vida, num trabalho quase que arqueológico, montam o que cada um foi em outras encarnações. Poucas vezes reencarnamos como escravos, como mendigos, como bandidos, o mais freqüente é ter sido filho de um Faraó, ter vivido como nobre da Corte de Luiz XV, ter-se investido no corpo de algum General do exército napoleônico. Talvez, no fundo, todos lutem por dar algum sentido a suas vidas, procurando lastros, lançando âncoras na tentativa de fundear nossos navios existenciais que singram a deriva em meio ao tsunami da morte de todos os dias.
Cerdônio Benuar chegou a Matozinho aí pela década de 1920. Tornou-se um próspero comerciante na cidade e, no inventário, legara aos descendentes além de inúmeras propriedades , mais de vinte imóveis na Vila. Os filhos e netos tocaram os negócios do velho com muita maestria e foram ampliando sobremaneira o patrimônio da família. Quebraram a inflexível regra de “Pai rico-filho nobre-neto pobre”. O sobrenome Benuar Cerdônio legou também aos seus descendentes, no entanto, desde tempos imemoriais a família era conhecida como “Canela Preta”. Talvez a mudança tenha advindo da estranheza do “Benuar”. Consta que os filhos primogênitos do patriarca ainda andaram puxando peixeira por conta da denominação. Nos anos 40, no entanto, Caledônio, um dos filhos mais novos, enveredou pela política e assumiu , de vez, o sobrenome. Depois de muitas e muitas eleições, a família terminou assimilando definitivamente o “Canela Preta”. Junto à assimilação, no entanto, vinha anexa toda uma mitologia gloriosa e épica sobre o nome familiar.
Segundo eles, o primeiro Benuar teria vindo fugido da França. Célion era filho de Luiz XVI e de Maria Antonieta e, na hora do pega-pra-capar, em plena Revolução, uma mucama chamada Louise Fragonard, havia fugido com a criança, no intuito de livrá-la da guilhotina. Em pleno inverno, fugindo a pé, haviam, por fim , chegado a uma pequena cidade do Sul da França chamada de Tarbes. Chegaram enlameados e sujos . Louise contou uma história fantasiosa que havia fugido de um marido louco e violento que queria matar a ela e ao filho. Ali ficaram conhecidos como os “Pied Noir”, ou , na tradução, os pés pretos. O “Pied Noir” terminou virando na corruptela de “Benuar” . Fugiram depois para a cidade de Viseu, em Portugal, uma vez que estavam sendo perseguidos pelos revolucionários e seus asseclas. Célion casou ainda em Portugal e gerou uma única filha : Leopoldina Benuar. Ela seria a avó de Felipe Benuar que veio morar no Brasil e que teve entre sua descendência Cerdônio Benuar aquele que veio bater em Matozinho. A família explicava que por conta do francês “Pied Noir” , pé preto, é que veio o Benuar, que em Matozinho, para facilitar as coisas, virou : ”Canela Preta”. Os “Canelas Pretas” geralmente terminavam a narração da história declarando : se voltar a Monarquia na França, nós vamos reivindicar nossos direitos, pois somos co-sanguíneos de Luiz XVI: “O Estado é nóis mermo aqui!”.
Esta era a versão épica apresentada pela família . Existia, no entanto, uma outra menos heróica e mais plausível e que circulava, à sorrelfa, de boca em boca. Quem a narrara, pela primeira vez, havia sido o velho Sinfrônio Arnaud, já beirando o próprio centenário. O homem guardara a versão oficiosa quase como segredo de estado, pois sempre se fizera grande amigo dos “Canelas Pretas”. Só contara porque, segundo os amigos, já nos noventa, andava “tresvariando” . Cerdônio, segundo o velho Arnaud, era filho, na realidade, de uma prostituta antiga de Matozinho chamada Judite. Ela ali fundara um dos primeiros rendez-vous da cidade conhecido por todos por “Caçuá”. O nome Benuar, na realidade, seria uma corruptela de “Caçuá” e não sobrenome porque , rodada como era Judite, seria impossível saber quem era o pai sem fazer exame de DNA em todos os homens casados e solteiros da redondeza. Embora existissem suspeitas sérias em cima do Padre Umbelino Candeia. Bom, e o sobrenome famoso “Canela Preta” veio por conta da atividade primeira de Cerdônio, nada higiênica: “Esgotador de Fossa”. O homem , trabalhador como era, vivia com as canelas pretas , calabreadas de excremento.
Bem, amigos, aí vão as duas versões. Escolham a que melhor lhes apetecer. A genealogia de Celedrônio não é diferente de tantas outras fabricadas por aí. De qualquer maneira, se um dia forem a Matozinho, aconselho que esqueçam a versão do velho Sinfrônio Arnaud. Ninguém tem pé-de-ouvido prá fuxico, nem barriga prá amolar lambedeira de doze polegadas.
J. Flávio Vieira

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