TRIPULANTES DESTA MESMA NAVE

quinta-feira, 15 de setembro de 2011

mãe e filha do cinema

 fotos Iluminura Filmes
Vacas que pastam. Vacas que passam. Vacas que mastigam o tempo. O tempo é o sólido personagem de “Mãe e filha”, segundo longa-metragem de Petrus Cariry.  As vacas, que num segundo de percepção podemos fazer uma analogia ao cinema de Apichatpong Weerasethakul, ouso tranquilamente dizer que o cearense Petrus é bem mais um talhador do tempo no cinema do que o cineasta tailandês.  E trago agora a referência de Andrei Takovski e seu cinema esculpindo o tempo. Petrus sabe igualmente com maestria o movimento do cinzel na tela, desde seu primeiro longa, “O grão”, desde seus primeiros grãos germinados nos curtas-metragens.
Depois de uma longa separação, mãe e filha se encontram no sertão, entre ruínas e lembranças. O destino da filha nega o sonho da mãe. O passado é um círculo que aprisiona os vivos e os mortos. A filha quer romper, mas as sombras espreitam – é o que diz a sinopse.  E quando se mergulha nos 80 minutos do filme, vê-se que até no resumo em que o cineasta abrevia a história, ele consegue proporcionar o tempo nas palavras certas. “Mãe e filha” é somente isso e muito mais.
O tempo que se alonga nos planos da filha pelo corredor da casa é o mesmo tempo da mãe caminhando pelas ruas da cidade deserta.  O tempo que se molha na chuva é o mesmo tempo que se queima nas velas que iluminam a solidão da casa e o silêncio das pessoas. O tempo metálico que range no cata-vento que puxa a água do ventre seco do sertão, é o mesmo tempo do dolorido cacarejo final da galinha sangrada pela velha mãe. O tempo aparentemente estático nas fotos antigas dos familiares é o mesmo tempo dos vaqueiros parados logo após o batismo do menino morto. O tempo das luzes que entram pelas frestas das portas e janelas, pelas réstias dos telhados, é o mesmo tempo dos raios de sol cortados pelas lâminas do cata-vento. O tempo que a filha reclama da ausência do pai em sua vida, é o mesmo tempo em que não se sabe do pai do rebento morto. O tempo em que a filha pergunta incerta para mãe se acredita em Deus é o mesmo tempo em que a mãe responde incerta em seu politeísmo “qual Deus?”. O tempo em que a avó batiza o netinho morto na pia encardida é a mesma pia do tempo amarelado em que a filha molda o barro que destinará ao filho. O tempo em que o menino se chama Antonio é o mesmo Antonio que se denomina o avô que se foi há tempos. O tempo que a avó pergunta pra filha “como está” o menino morto, é o mesmo tempo em que ela trata a “indesejada das gentes” como vida. O tempo que a filha sobe numa cadeira para afagar as estátuas santas num armário, é o mesmo tempo que a avó lava e acaricia o corpo da criança morta.  O tempo que a filha junta cacos na igreja, é o mesmo tempo em que ela une e desune os pedaços da fé em ruínas. O tempo em que num belíssimo plano a imagem da avó surge num espelho como um fantasma, é o mesmo tempo em que a filha volta evanescente para casa depois de muitas estações. O celular que a filha tenta ligar e não funciona, é o mesmo tempo moderno que está no passado inútil na camiseta com a estampa de Marylin Monroe.
Em “Mãe e filha” o cineasta Petrus Cariry supera-se sem delimitar-se (ao mesmo tempo) com relação ao longa anterior. Fica difícil apreciar lúcida e criticamente um filme sem observar elementos de outro, porque o diretor não faz filmes: faz Cinema.  Nada falta no centro de “Mãe e filha”, como nada sobra pelas laterais dos enquadramentos. O domínio narrativo no filme tem a precisão de quem sabe recortar o espaço e moldar o tempo com o equilíbrio da razão e a harmonia do coração – ou o contrário, se a destreza é a mesma.
Não há a chamada química entre as atrizes Zezita Matos e Juliana Carvalho: há uma alquimia na interpretação das duas, respectivamente a mãe Laura e a filha Maria de Fátima.  Uma vez o diretor mencionou que seu plano preferido no filme é o da rede em que a avó embala o corpo do neto, numa belíssima composição fotográfica de contraluz na porta da casa.  Eu tentei escolher um de tantos que me agradam, inclusive o citado, e me perdi em vários, e me encontrei no filme por inteiro.  A beleza e grandiosidade dos planos estão em consonância no filme completo, tanto é que parece ser encenação na própria história a inclusão do quadro “Ophelia”, de John Everett Millais.  A obra mais famosa do pintor inglês, do século 19, retrata romanticamente a imagem idealizada da mulher trágica: o amor de Hamlet que se suicida, flutua num lago, de semblante petrificado, emoldurada por uma vegetação melancólica. O clima renascentista da pintura entra no sertão metafísico de Petrus em composição simbólica de forte ressonância com o que se viu em sequências anteriores. E com o que virá.
Um filme bom nunca termina: ele continua pulsando em nossos olhos, encantando e provocando. Depois da fortíssima cena da mãe enterrando o filho, ela anda pela estrada de volta a algum lugar no futuro de si mesma. Solta os cabelos como para libertar-se de alguma expiação. E segue. Com sua mochila nas costas e Marilyn na camisa, a câmera a acompanha pelo chão sagrado.  E depara-se com os quatro vaqueiros (do apocalipse?) barrando-lhe a estrada. E ela dispara em confronto. Escurece a tela. O filme acaba aí, mas não termina lá.

Nenhum comentário: