O Armando Rafael bem que pegou no pulso deste caririense de quatro costados. Que olha para o amanhecer e já pensa o quanto o dia tem de possibilidades, que se emociona no crepúsculo emoldurado pela chapada, olha para o sul como o mais profundo dos sertões e para o norte assim como para o sentimento do imenso. A imensidão da Amazônia.
Aí ele me deixa de papilas paladares a buscar os sabores ancestrais. Os sabores de uma era inteira. Aqueles sabores que se juntam do local e todo o hinterland do qual somos o umbigo: os sertões semi-áridos. Não pensamos no caririense sem as manadas de gado vindas da caatinga, que as cargas de queijo cheguem, sem que os caminhões subam a ladeira levando mercadoria.
Eu quase que dizia as cargas de rapadura transportadas para os sertões, mas a moagem anda tão escassa e o açúcar refinado é mais do gosto. O queijo dos currais históricos ficou uma coisa meio assim, o colesterol entope e a velhice moderna tem que comer o queijo de outros lugares. Aí você passa numa esquina e vê uma panela de mugunzá salivando deste a tampa até nossas bocas, convida o amigo e ele olha apavorado com o rosto cheio do veneno da comida.
Há um ano, senti muito, o Armando estava convalescente e não o vi. Mas me fartei da genuína gente do cariri. Da melhor estirpe num Buffet de alto nível todo à moda internacional. Tome whisky, cervejas importadas, algumas canções da nossa época todas em língua estrangeira, mas o caririense há muito que gosta disso.
Aí para o máximo que um dia é capaz vou a um dos restaurantes mais lindo que conheço. Fica acima da nascente e dele se descortina todo o lindo vale do Cariri. E estávamos no regime das chuvas tinha tanto verde que Deus nem sabia que havia criado tal variedade. O panorama era comparável a qualquer outro acidente geográfico do mundo de igual natureza. Falo da beleza.
E tinha algo mais intenso. Era um restaurante com varanda, juntando todos os elementos das varandas que vêm desde os trezentos anos avocados pelo Armando. Aquelas varandas que não apenas nossos olhares contemporâneos esfriaram a vida, mas toda a nossa geração de avós. E as plantas em volta com babaçuais, mangueirais, sirigueleiras, cajaraneiras e um intrincado de matos e suas flores gentis a emoldurar toda a alma do olhar caririense.
Estava completo e examinei o cardápio. Como nossos cardápios. Uma lista imensa de possibilidades. Fica até difícil escolher. Desço o olhar de cima abaixo da lista e retorno ao topo. O quê escolher? Vou matar uma fome cubana. Pensei eu. Para melhorar o clima peço uma cerveja gelada de quebrar os dentes da ex-governadora Sarah Palin do Alasca.
Pronto eu estava pachorrento como o espírito de Fernando Henrique Cardoso. Não digo satisfeito, afinal com aquele cardápio à minha frente a pachorra era apenas aparente, igual ao “ex” quando sente o cargo ocupado por outro que não ele. E tem mais apesar da variedade, eu não me perdi no cipoal de ofertas. Havia algo a se destacar no todo e meu espírito caririense foi certeiro sobre ele: eu quero esta buchada anunciada no cardápio.
Comemorei com outra gelada e o entusiasmo da paisagem tomou um vigor novo. A lábia estava molhada e poderia falar à vontade sobre tudo. Absolutamente tudo, daí a pouco a santidade que guarda toda esta chapada iria me servir uma buchada. Uma buchada a me transportar ao original ser qual era antes destas transmigrações urbanas. Uma buchada com sabores capazes de reconhecer todo o meu corpo como aquele mesmo que a provou pela primeira vez e jamais esqueceu.
Aí vem o prato fumegante da buchada. Meus olhos eram faróis de reconhecimento. A moça depositou a iguaria bem no centro da mesa e nem bem o prato se assentara sobre a tábua, já estava com faca e gafo pronto para partir o sabor de um mundo vasto e apenas explicado pelo gosto. Avancei mais que os outros e já tinha meu quinhão sobre o meu prato.
A antecipação era tão forte que qualquer suspeição ficaria relegada ao rabo da fila das negações. Os bocados estavam prontos para se transformar na comunhão do meu espírito caririense.
Hummmmm. Ihhhhh. Não. Não. Não. Que gosto estranho. Uma antítese de se perder o rumo. Olho para o prato dos companheiros de mesa e os rostos eram iguais em decepção. O que havia.
Minha filha que buchada é essa?
Senhor?
Que buchada é essa?
Buchada? – a expressão de incompreensão da moça que nos servia.
Essa que você nos serviu
.
Ah! É de tilápia.
A paisagem desabou. A moldura rachou. Eu quase saia correndo de ladeira abaixo e me abraçava à carcaça do motor da luz.
Mas tem mais. Não saia ainda não. No restaurante não tinha piqui e estávamos na safra. Meu marido não tem comprado o povo não pede mais, explicou-me a dona. Bom eu vou ao mais tradicional dos tradicionais do meu querido Crato e como piqui no Pau do Guarda. Qual o quê!
O Pau do Guarda é uma steak house, piqui o povo não gosta. Quase que corro para o Juazeiro. Esperem um pouco que o mesmo poderia acontecer por lá. Era para pegar o avião e me refugiar na Feira de São Cristóvão. Aqui no Rio.
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