A década de 1860 foi trágica para
todo o Cariri. Iniciou-se, por aqui, a terrível epidemia de Cólera que ceifou
incontáveis vidas. Só no primeiro ano da
tragédia, 1862, mais de duas mil almas sucumbiram em Crato, Milagres, Barbalha,
Jardim, Missão Velha, Santana. A região entrou em pânico, pessoas abastadas
fugiram, o Exu bloqueou, com fogo de artilharia, a entrada de pessoas vindas do Cariri, temendo
contaminação. Um padre negou-se a dar extrema unção ao Padre Marrocos , um seu
irmão em Cristo, e outro escafedeu-se para outras paragens. Segundo o Jornal “O
Araripe, o delegado de Crato Francisco José de Pontes Simões, abandonou seu
cargo, temendo a peste, só voltando
“gordo e rechonchudo” quando os casos começaram a rarear, dois anos depois.
Como em toda grande epidemia, não houve respeito a classes sociais, a sexo ou poderio econômico. A população terminou
dizimada igualmente. Imaginem uma hecatombe dessas no Cariri, em tempos em que
quase não havia profissionais de saúde, em que inexistiam hospitais, em que
nada se sabia sobre a causa e tratamento da doença. Aqui em Crato foi preciso
construir um novo Cemitério, ali nas imediações da Igreja de São Miguel, a fim
de acolher as incontáveis perdas. Estabelecida a histeria coletiva, não tão
diferente do que acontece hoje com o Ebola, muitos foram inumados ainda vivos,
igualzinho à Peste Negra, na Idade
Média.
Designado
a vir combater a epidemia no Cariri ,
aqui chegou, em 1861, o médico militar Dr. Antonio Manoel Medeiros. Chefiou, na região, uma equipe que incluía os
Drs. Pedro Théberge de Icó , Cristovão
Holanda Cavalcanti e Manuel Marrocos . Trabalhou incessantemente até 1864 ,
visitando todas as cidades acometidas da moléstia e , com os parcos recursos
disponíveis, buscou minimizar as mortes e lenir o sofrimento. Dr. Medeiros era
natural de Aracati, onde nascera em 1820 , formara-se na Bahia e a ele devemos
a primeira cirurgia realizada no Sul do Ceará. O ato aconteceu em 29 de
Novembro de 1861, uma amputação, registrada no Jornal “O Araripe”. O paciente
foi cloroformizado , esta sendo também a primeira anestesia registrada nestas
plagas. Um avanço formidável para a época, uma vez que o Clorofórmio passou a
ser utilizado apenas a partir de 1846, na Inglaterra.
A
vida de Dr. Antonio Manoel de Medeiros
foi épica. Poderia fazer parte da Ilíada caririense. Tão logo deixou o
Cariri, foi designado , como voluntário, para a Guerra do Paraguai, onde
prestou serviços valiosos como Diretor em
hospital de Montevideo. Terminou
condecorado comas Ordens de São Bento de Aviz, da Rosa e de São Gregório Magno
em Roma. Exerceu, a partir de 1872, o cargo de Delegado do Cirurgião-Mor do
Estado do Ceará. Logo depois, enfurnado no interior do estado, no combate a
várias epidemias de Varíola e Febres, adoeceu
, em viagem de Icó a Fortaleza, e veio a
falecer em Limoeiro, em 1879, aos 52 anos. Faltou-lhe, nos últimos
instantes, a assistência médica que
durante toda a existência proporcionou a
grande número de cearenses pobres e famintos. Numa vida tão breve, imersa numa Arte tão
longa, além dos estudos, das viagens seguidas, do combate incessante às
epidemias, do trabalho no campo de batalha, o que lhe terá sobrado para dedicar
à sua vida pessoal e à sua família ?
O
certo é que o Dr. Medeiros ofereceu-se
quase à imolação no altar da Ciência. Deu-nos o melhor da sua arte e o melhor
dos seus dias. Lutou, palmo a palmo, contra um inimigo terrível e desconhecido,
enquanto tantos escapavam pela tangente. O Cariri nada lhe ofertou em troca,
nem o mais simplório reconhecimento. Sequer o nome de uma rua, de um hospital,
de um edifício. Nem mesmo uma citação honrosa. Nada ! Cento e cinquenta anos
depois, neste dia dos médicos, lhe ofereço este texto , simples, descolorido,
cru. Mas percebo , claramente, que é por conta de pessoas despojadas e
corajosas como o Dr. Antonio Manoel de Medeiros que ainda vale a pena exercer a
Medicina não como técnica , mas como vocação, fatalismo e arte. São artistas como ele que impulsionam
os movimentos de rotação e translação da terra.
J. Flávio P. Vieira
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