TRIPULANTES DESTA MESMA NAVE
domingo, 26 de agosto de 2007
LÃ
Sala em semipenumbra. No centro :um velho divã de um azul gasto , acompanhado de suas inseparáveis cadeiras acolchoadas e carregando a mesma cor esmaecida. No chão, um velho tapete felpudo, de pele de carneiro, abrigando o gato cinza da casa , ferrado num sono tranqüilo, como se sonhasse com um mundo repleto de ratos. Na parede -- de um bege descolorido que já não recordava a última demão-- postava-se uma velha gravura inglesa . Era um lago de água cristalina , envolto por montanhas cobertas por pinhos bem alinhados e salpicados de uma fina camada de neve, tendo no meio um barquinho rústico com um jovem bem vestido na popa, manobrando os remos e, na proa, acomodava-se uma linda mocinha, com um vestido farfalhante branco, portando na cabeça um lindo chapéu da mesma cor e com as mãos segurando uma sombrinha em perfeita combinação com o vestido.O quadro imprimia um ar discretamente sentimentalista à sala. Defronte à porta principal , que ligava a casinha à varanda em “L” , perfilava-se uma cadeira de balanço de aparência antiga, mas muito bem conservada. Nela refestelava-se uma velhinha de cabelos prateados, óculos redondos e a meio nariz e que se balançava delicadamente num pêndulo doce e calculado. Suas mãos, ainda ágeis, manobravam uma agulha que tecia , pouco a pouco, flores arredondadas e em alto relevo. O fio de lã se desenrolava ritmicamente do novelo adormecido numa cestinha de vime posta ao chão, ao pé da cadeira.No colo, a velhinha guardava já um longo fragmento da toalha de mesa que vinha sendo pacientemente tecida há muitos e muitos meses.
O silêncio da salinha era quebrado apenas pelos delicados movimentos dos dedos na lã e pelo ruflar invisível das asas de um beija-flor que assediava sensualmente uma rosa-menina que pendia de um jarro da janela. A mântrica repetição dos movimentos da agulha e da cadeira como que hipnotizava a velhinha. E o sono desenrolou-se como se preso estivesse ao novelo de lã. A cabeça prateada, empurrada pelo sono, recostou-se sobre um dos ombros e a agulha tombou sobre o projeto da colcha.
De repente, o silêncio da sala perturbou-se com um outro som.Um guri nu na inocência dos seus oito meses engatinha pela sala e se aproxima da cadeira da vovó. Ali encontra o fio de lã que ligava , umbilicalmente, o novelo ao promissor início de colcha. Enrosca as mãozinhas no fio e tenta escalar a altura da cadeira, como se se tratasse das tranças de Rapunzel.Mal percebe que o fio não tem sustentação e que à medida que segue puxando, vai, pouco a pouco, desfazendo o trabalho de tantos e tantos meses da avó. Quando desperta, a velhinha atônita se depara com o netinho sorrindo enroscado numa rede que minutos antes havia desenhado um jardim , na colcha que tão cuidadosamente vinha sendo construída.
Na sala só o beija-flor pareceu entender a profundidade da cena que acabara de presenciar. No tear da vida é exatamente assim. O novo sempre é tecido pelas mãos do velho e mal a colcha começa a se desenhar principia o desfazer-se A obra do homem, por mais linda e promissora que seja , tecida com inspiração e transpiração , árdua e demoradamente, se desfaz num fugaz instante . O tempo, engatinhando como um menino, desfaz o crochê da vida continuamente : os desenhos das ilusões, o bordado das esperanças, o macramé do vivido e do por viver. Perplexos o beija-flor e o menino como se perguntam: E o que fazer com este fio de eternidade a atar, indelevelmente, o novelo do desejo à esfacelada colcha do sonho ?
J. Flávio Vieira
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Um comentário:
Não me surpreende mais nada vindo de você, seu Zé! Cada leitura que faço de um dos seus contos já fico na ansiedade pelo próximo. Já estou em Fortaleza!
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