TRIPULANTES DESTA MESMA NAVE

quinta-feira, 4 de outubro de 2007

No Caminho com Matheus


A DÁDIVA E A DÍVIDA
Bons e cômodos tempos estes em que vivemos! Repoltreado confortavelmente no divã da sala , você deve muitas vezes ter pensado nisto. A luz elétrica ilumina todas as dependências da casa e os aparelhos todos funcionam ao simples toque remoto. A refeição ,há pouco tempo retirada do freezer, acaba de sair quentinha do micro-ondas. Seus filhos, hipnotizados pela TV e pela Internet, mal dão conta do cheiro agradável da comida artificial que invade a casa. Sua esposa enxaquecada, recém chegada do analista, após uso dos mais modernos analgésicos, repousa na cama larga, no quarto em que o ar-condicionado mimetiza um agradável clima suíço. O mundo lá fora ferve e fervilha mas você o fita pela janela, com ar distante, como se assistisse a um filme de ficção. Certamente por muitas vezes deve ter se sentido feliz e realizado, pelo simples fato de ter feito brotar, como do nada, um mundo todo seu , longe de todas as intempéries e agruras dos tempos atuais. Como o Criador, no Gênesis, você tem a plena consciência que fez criar todo este seu universo particular, do caos, com um simples toque do seu poder quase divino.
Impossível descobrir que todo este mundo que está à sua volta, se lhe pertence, bem pouco você contribuiu para sua edificação. É que fomos todos ficando metidos a bestas e importantes nos últimos tempos. Sequer somos capazes de admitir que o nosso conforto atual( este pequenino mundo que pensamos ter construído) está edificado sobre o suor,o sangue e as lágrimas de uma infinidade de pessoas que arrancaram uma parcela de suas vidas para que , hoje, pudéssemos ostentar tamanha importância e felicidade. Quantos meses Edison gastou da sua preciosa vida para nos dar o conforto da luz? Quantas noites indormidas precisou Freud dispender para que sua mulher pudesse aliviar-se dos seu fricotes, no analista? Quantos cientistas labutaram incessantemente, desde a descoberta do fogo , para que você pudesse ver o alimento sair quente e rápido do micro-ondas? Quantos anos teve que avançar a Medicina, com o trabalho diuturno de uma infinidade de médicos, para que sua esposa, hoje pudesse ter às mãos um analgésico para lenir suas dores? . Giovano Bruno foi queimado vivo por sustentar suas idéias sobre o heliocentrismo e Galileu , Copérnico, Tito Brake, Darwin, quase foram à fogueira. Os grandes avanços da Medicina, por sua vez, se fizeram nas guerras, à custa do sofrimento e dor de milhares e milhares de pessoas. Até a liberdade que você desfruta, que parece uma coisa tão natural e simples, que sugere ter aparecido por geração espontânea, foi arrancada a duras penas , por uma infinidade de mártires: Che , Tiradentes, Lamarca, Antonio Conselheiro, Frei Caneca e tantos e tantos outros, do nosso martirológio cotidiano. Tudo que está à sua volta foi construído não por você , mas por um sem número de pessoas que lhe antecederam neste mundo e que deram muito do seu trabalho , do seu suor, do seu sangue e muitas vezes mesmo a própria vida para que você hoje possa deitar-se no sofá, com ares monárquicos, sentindo-se o mais nobre dos mortais.
Assim, quando você se sente de alguma maneira incomodado, quando lhe cobram algum gesto de solidariedade, acorde deste sono letárgico e pense nisso. Doar sangue ou órgãos para quem necessita é um ato de amor, de compreensão, mas saiba que com isso você está apenas buscando pagar uma ínfima prestação, um pouco da imensa dívida que todos temos para com a humanidade. Ao doar Sangue e órgãos você está apenas levando uma pequena oferenda ao altar da ciência , em louvação àqueles santos e mártires que se embrenharam no incômodo das selvas, dos laboratórios e das fogueiras para que hoje você possa se sentir alegre e saudável . Se tantos e tantos que o antecederam derramaram tanto sangue para que você se sinta hoje plenamente realizado , não é justo doar um pouco do seu para trazer o sorriso de volta a tantas criancinhas que esperam que a alegria e conforto que você desfruta hoje não seja apenas um privilégio seu, mas um bem extensivo a toda a humanidade?


J. Flávio Vieira

Um comentário:

LUIZ CARLOS SALATIEL disse...

Zé,
E quando se sabe que esse caras metidos a bestas e que alcançam e usufuem do "bem bom" tecnológico é um pouco mais que 40 % da nossa humanidade. Outros quase 60 % estão a beira da miséria. Quanto se deve aos negros e aos índios que foram abandonados a sua própria sorte depois de explorados neste país?