TRIPULANTES DESTA MESMA NAVE

sábado, 1 de dezembro de 2007

CARIRI – A Nação das Utopias (parte I)


(O texto a seguir me foi mandado pelo Rosemberg para publicação especial no CaririCult. Por opção minha, estou dividindo em partes que serão publicadas durante a próxima semana. A foto que ilustra a postagem é de L.C.Salatiel )



Texto de Rosemberg Cariry

A região do Cariri cearense é um oásis, o verde coração do semi-árido nordestino. Apesar de ser uma terra de farturas e de portentos, sua história revela a tragédia do processo civilizatório sertanejo no destino de um povo - os Cariri (Kariri ou Quiriri) - que se fundiu na carne e na alma dos seus inimigos: fazendeiros, criadores de gados, agricultores e vaqueiros oriundos de Sergipe, de Pernambuco e da Bahia. Ao Cariri cearense, centro geográfico com eqüidistância para as principais capitais do Nordeste, desde meados do século XVII até os dias de hoje, continuam a chegar multidões sertanejas, em um fluxo constante, atraídas pela fertilidade e pela sagração do território como espaço mítico.

A Chapada do Araripe

A natureza no Cariri cearense é generosa. O santuário ecológico da chapada do Araripe – que em língua indígena significa Lugar das Araras, com uma altitude de 900 metros, detém uma rica biodiversidade, formando o ecossistema peculiar da região, caracterizado pela fertilidade do solo e pelo clima ameno. A chapada do Araripe ocupa uma área de 180 km de extensão na direção leste-oeste e 50 km de largura na direção norte-sul. Composta de várias camadas de arenitos e uma de calcário, teve a sua formação durante o período cretáceo. A formação Santana é hoje um dos sítios paleontológicos mais importantes do mundo, sendo protegido como patrimônio cultural do povo brasileiro. Nas pedras calcárias encontradas quase à superfície da terra pode ser encontrada uma imensa variedade de fósseis de vegetais, peixes, tartarugas, conchas, dinossauros e répteis voadores. Dada a sua importância geográfica e a necessidade da sua preservação para o equilíbrio ecológico do semi-árido nordestino, no ano de 1946, o então presidente Dutra assinou o Decreto-Lei que criando a Floresta Nacional do Araripe-Apodi, com uma área de 34.790 hectares. Já recentemente, um outro Decreto-Lei da presidência da República criou a APA-Araripe e os 2,4 milhões de hectares da chapada passaram a ser área de proteção ambiental.
As 307 fontes naturais de águas doces e cristalinas, que brotam dos sopés da chapada e das serras, abastassem a região e permitem o cultivo agrícola durante quase todo o ano. O historiador Irineu Pinheiro disse que “o Cariri é uma dádiva do Araripe”. Pode-se também dizer, usando a licença poética, que a chapada do Araripe é um mulher, simbologia da Deusa-Mãe, com seus seios grandes e fartos, sempre oferecidos em abundância, alimentando com seu leite os áridos sertões do Ceará.

As Fronteiras do Cariri

Existem várias visões que definem as fronteiras do Cariri. A primeira leva em conta a abundância de águas e a fertilidade do solo e reduz o Cariri ao ubérrimo vale que se estende ao sopé da chapada do Araripe. Lá estão localizadas as cidades de Crato, Juazeiro e Barbalha. O triângulo Crajubar, que abriga a maior população, o maior desenvolvimento e a maior diversidade cultural, é o centro econômico de uma região mais ampla. A Segunda visão, popularmente aceita, leva em conta o clima e define que o Cariri compreende onze Municípios: Abaiara, Barbalha, Brejo Santo, Crato, Jardim, Juazeiro do Norte, Milagres, Missão Velha, Porteiras, Nova Olinda e Santana do Cariri. A terceira visão, mais larga, abrangente e burocrática, define administrativamente o Cariri como todo o extremo meridional do Estado do Ceará, com uma área 15.934Km2 e uma população estimada em 800 mil habitantes, compreendendo 26 municípios, incluindo-se ainda (afora os já citados): Altaneira, Antonina do Norte, Araripe, Assaré, Aurora, Barro, Campos Sales, Caririaçu, Farias Brito, Granjeiro, Jati, Mauriti, Penaforte Potengi e Várzea Alegre. Uma Quarta visão, mais abrangente ainda, compreende o Cariri como o sul do Ceará, os sertões do Riacho da Brígida, no Pernambuco e os sertões do Cariri Velho, na Paraíba. Foi pensando nessas fronteiras mais largas, definindo a região mais pela história e pela cultura comum do que pela unidade climática, que o senador José Martiniano Pereira de Alencar, propôs em 1839, a criação da Província do Cariri que incluía, além do Cariri cearense, os Cariris da Paraíba e do Pernambuco.
É muito pobre a definição do Cariri apenas como um espaço geográfico. O Cariri, antes, trata-se de uma nação de mestiços Tapuia que têm em comum a mesma formação histórica e cultural. Mesmo se levarmos em conta apenas o espaço geográfico onde os Cariri habitaram e deixaram a sua marca na cultura popular teremos que considerar ainda os sertões do Piauí, da Bahia, de Alagoas, de Sergipe e do Rio Grande do Norte. Os sertões desses estados formam o território físico e cultural da grande Nação Cariri.
Na maioria das narrativas históricas a palavra Cariri tem a mesma significação que tapuia. Os índios Tupi, conquistadores do litoral, denominavam de tapuia todas as “outras” nações, geralmente inimigas, que não falavam a língua geral. Os colonizadores portugueses tomaram emprestados dos Tupi o termo tapuia para designar todas as nações indígenas que se localizavam nos desertões (sertões) e que resistiam ao processo colonizador. Pode-se então definir que o Cariri compreende todas as áreas dos sertões do Nordeste, ocupadas pela cultura tapuia ou Cariri que será denominada, a partir de agora, de cabocla-cariri. Mais adiante, será objeto de comentários neste texto a cultura que resultou do conflito e da almagação de diversas culturas e etnias nos alicerces da nação sertaneja.


A Terra do Encantado

Sérgio Buarque de Holanda, em A Visão do Paraíso, demonstrou como a terra brasileira, com a sua fertilidade e clima temperado, revelou-se aos europeus como o “Paraíso”, uma terra de prodígios e maravilhas. Os conquistadores projetavam na Nova Terra os delírios hedonistas do “Pays de Cocagne”, narrativa popular medieval que fala de uma espécie de Paraíso (do qual se originou o nosso cordel “País de São Saruê”), onde tudo existia com abundância e todos os desejos do homem podiam se realizar. No Livro Espelho Índio – a formação da alma brasileira, Roberto Gambini diz: “Sendo o Paraíso o lugar das delícias, é onde o homem brinca livremente nos campos do Senhor até desobedecê-Lo e onde tudo é dado de presente. É o lugar da fruição: basta estender a mão e apanhar o fruto, a mulher, o pau-brasil, o braço escravizado... Nessa nova terra ignota e ‘descoberta’, que não era de ninguém e que além do mais recebe a projeção do Paraíso sobre si, constitui-se dessa forma a matriz de uma consciência para qual é possível e
desejável apropriar-se da cornucópia e sugar para sempre, como eternos filhos que nunca crescem, o leite de um seio inexaurível”.
Situado em meio à seca e às agruras do semi-árido nordestino, o Cariri cearense, com seu clima temperado, suas fontes de águas cristalinas, suas terras verdes e férteis, também revelar-se-ia ao conquistador como um o lugar da fruição.
Para os índios que habitavam a região, o vale do Cariri cearense já era “território sagrado”, bem antes que os primeiros colonizadores católicos chegassem para a conquista, a posse e o saque. Foi em defesa dessa terra da fertilidade e da fartura, onde se situava também o “espaço mítico”, que os índios Cariri fizeram guerras contra os invasores brancos e mestiços colonizadores e, bem antes, contra as tribos dos sertões que, empurradas pela escassez de víveres e pelas secas periódicas, tentavam se estabelecer na região. Índios, negros e mestiços do Nordeste já conheciam o Cariri cearense como “terra da fertilidade”, como “chão sagrado”, bem antes das pregações do padre Ibiapina e de Antônio Conselheiro, do milagre da beata Maria de Araújo e da fama do padre Cícero. O “caldo mítico” original foi propício à fecundação e eclosão dos futuros movimentos religiosos e crenças messiânicas populares. Os expulsos do “Paraíso” sonhavam com o retorno.

4 comentários:

Armando Rafael disse...

Salatiel: Rosemberg Cariry sempre genial. Excelente matéria...

Carlos Rafael Dias disse...

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Océlio Teixeira de Souza disse...

Muito bom o texto. Agora, definir os Cariri como uma nação de mestiços tapuias, acho meio complicado. O termo tapuia, usado pelos Tupi para designar os povos que não falavam sua lingua e que eram seus inimigos, carrega uma enorme carga de preconceito e foi foi muito bem aproveitado pelos colonizadores. Usar o termo tapuia significava chamar os povos do interior de bárbaros. Além disso o termo não permite a visão de pluralidade das várias etnias presentes no Nordeste. Além dos Cariri, tinhamos também os Caraíba e os Guaitacá, dentre outras. Os Cariri, por sua vez, se dividiam em diversas tribos ou mesmo etnias,como os Ico, Icozinhos, Paiacus, Janduísn Panatis, Coremas, etc. Assim, creio que é importante não cairmos na tentaçao da uniformização.

Océlio Teixeira de Souza disse...
Este comentário foi removido pelo autor.