TRIPULANTES DESTA MESMA NAVE

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2008

550 km (ou a nobreza de se atravessar uma ponte numa noite santa de sábado)

"(...)A FONTE NA SEGUNDA-FEIRA NÃO MATA NADA NEM A SEDE."
Lupeu Lacerda, Entre o alho e o sal, 2007, p. 61


1.


Na ida, expectativa em todos. Éramos os caras que tiravam fotos, empertigados e presunçosos. Com nossas roupas comuns e nossas mochilas. Tentando demonstrar - através de um olhar mais enviesado, um queixo proeminente apontado pro alto -, que podíamos ser eternos. Tal qual a foto onde Hal Chase, Kerouac, Ginsberg e Burroughs tiraram na época da Columbia.
Sim, foram várias fotos assim.


Mas no meu caso, a coisa era avassaladora. Cerca de oito ou nove anos me separavam daquele lugar. Da mesma ponte. Do cais – onde, em tempos idos, eu descolava fumo bom, uma foda, um livro do Miller - e que agora tinha dado lugar a um calçadão com seus bares enfileirados tocando a mesma música de merda.
Estava calado. Enquanto me perguntava qual era o real interesse naquilo. Se uma espécie de saudosismo babaca, daqueles que fazem o sujeito tentar voltar as coisas no tempo, ou se era pela diversão. Esse lance de dar um tempo da rotina e pegar a estrada.


Vale dizer que algumas coisas mudaram de lugar – um barco que atravessou as ruas do velho centro, e que agora repousa pacato do outro lado da ponte; as casas do bairro onde morei, verdadeiros bunkers ordenados com suas fachadas ensolaradas; o asfalto tomando conta da cidade. Eu já sabia que não ia ser a mesma cidade daquela época.


Tava meio ressabiado. Mas sorria pra foto, desejando ser, curiosamente, o Burroughs. Em seu poético pragmatismo; o velho junkie.

2.


Respirei o ar seco do local. Lancei um olhar curioso pro alto e vi que o zinco das telhas da rodoviária evaporava a quentura. Janeiro sempre foi assim por lá. Calor do caralho, a gente dizia enquanto chegavam os copos e as garrafas. Eu tinha chances. Nem tudo havia mudado tanto assim. Deu pra ver que eram as mesmas casas. Entre outras coisas daquela paisagem quase imutável – a velha estação de trem abandonada; trilhos cobertos pelo mato espesso; o arame farpado das cercas e velhos corcéis como táxi.


E as cervejas já desciam, os cigarros, as piadas infames e os velhos hermanos. E os novos hermanos. Ainda na rodoviária. Já tava ficando divertido. Mas a gente não esperava tanto.

3.


Um mito derrubado na livraria. Depois de quinze anos, com aquela imagem imbatível em minha cabeça, um dos caras tombou. Mas eu ainda enxergava um pouco de dignidade e misticismo; loucura e felicidade; alguma vontade de mudar a vida, ainda que depois de tanta coisa – sim, as palavras soaram como um retrocesso escroto; mas devo respeito, mesmo que a crença tenha se dissipado: ele estava lá quando tudo se iniciou, na mesma ponte, no mesmo cais.


Mas isso é coisa minha. Assumo. E o admiro.


Depois, Lupeu. Meu irmão “absolutamente importante”. Entre tantas ondas, cabeça erguida e punhos firmes. Enfiando jabs sorrateiros na porra da vida, que tentou derrubá-lo. Lucidez. A vida e a literatura indissociáveis.


Nos anos noventa, início do. Quando tudo parecia meio sombrio e sem graça. Quando literatura era uma coisinhas mórbida e sacal, um negócio filho da puta que tentava, a todo custo, me converter em cordeiro letrado e culto, ele me passou uns livros dos beats, junto com um baseadinho convincente. Uns dias onde amanhecer na concha acústica de Petrolina era início de semana, segunda de manhã; ressaca e corpo dolorido; um riso imaculado em nossos rostos barbados.


Isso é e sempre será minha literatura. Ou isso, ou nada. Antes a decência de grelhar filés e tentar aumentar o sal de nossos dias nas moquecas oferecidas com um amor incondicional.

4.


Quase tontos, uma mesa cheia de gente. Toda a nata do que aquelas cidades possuem de mais cintilante. Os poetas, figuras, contistas, pessoas amadas. Editores quixotescos; místicos que filavam nossos cigarros; primos queridos; idas furtivas ao banheiro – afinal, noite era longa e promissora.


Pensei na mitologia pessoal que o Sandro falou. Pensei na porra da lenda que temos em nós, que somente nós mesmos podemos contar.


A certeza de que não fomos cooptados. Ainda altivos, tal qual as fotos da rodoviária.

5.


Os outros dias, complementos de nossa tão preterida eternidade. O garoto de cavanhaque e boina negra, com um olhar desconfiado e seguro de si, que lia o Malcom X; os sujeitos que tentavam – mas não conseguiam, a pesar da grandiosidade de seus atos – dialogar com os meninos: era preciso três caras chapados de alegria e munidos de certezas sólidas, pra dizer que a vida é um começo, quase um tropeço; que tudo valerá, no caminho que escolhemos.


Papéis invertidos: nós falávamos e eles nos ensinavam.

6.


ATRAVESSAR A PONTE FAZENDO O CHÃO ESTREMECER. ALIAR-SE AO QUE DE MAIS VENERÁVEL EXISTE EM CADA UM DE NÓS. SORRIR, FUMAR CIGARROS DO LADO DE FORA DO CORSA BRANCO, SER FELIZ, DIALOGAR COM O IMPOSSÍVEL.


MAS PODEM CHAMAR DE HELTER SKELTER.

7.


Logo cedo, sentindo na boca o gosto estranho da saudade – mais cedo, outros inconfessáveis tomavam lugar do amargo da certeza da ida -, revemos as coisas. Respiramos um pouco o silêncio que nunca tinha surgido. Tristeza quase indisfarçável em meu rosto. Resolvi ficar calado. E manter o tal silêncio.


Somente quando nosso Túlio chegou com o carro, foi que saquei a hora.


Ao meio-dia, saímos. Silenciosos e ainda firmes em nossas escolhas. De que novos dias como aquele devem rolar. Entre outras descobertas e momentos. Deu tempo de dar uma olhada pra trás. Vendo a família beat acenar um tchau da porta daquela enorme casa branca.

Tribuna de honra: Lupeu, Islaine, Lucas, Luisa & Luana; Túlio "Cassady" & o Corsa; Angelo 'Dom' Roncalli & Moésio; Gabi; Cesinha & Mazé; Olegário Jr.; Cixto, Iramar, Dai & os garotos do Quidé; Pinsoh; Sidney 'Quixote' Rocha & Kabalah; Helter Skelter; Uberdã; cachorros-quentes sob a ponte; Levi...

3 comentários:

Lupeu Lacerda disse...

casa sempre aberta cumpadi
coração sempre aberto mi hermano
poesia siempre
e que venham mais mitos
pra que os derrubemos e construamos outros
inté feira de santana
hasta la vista siempre.

José do Vale Pinheiro Feitosa disse...

Gustavo: os textos se desenvolvem como um rio que preenche o leito sólido de nossas vidas. Assim é este texto. As cidades entre rios, as cidades físicas Petrolina/Juazeiro e as cidades pessoas Acontecido/Acontecendo/Acontecerá. E as cidades pessoas não se explicam pelas levadas pequeno burguesas, precisam de mais volume das águas, necessitam mais leitos. Querem ir ao interior profundo de um país continental ou à marginalidade de suas grandes cidades. Por o juízo pessoal numa velocidade distinta daquela entre o mercantil e a despensa.As cidades pessoas além dos rios que separam, se manifestam mais nas retas vazias da caatinga a pino do sol entre Petrolina e a Chapada do Araripe, com um doce de leite em Ouricuri e um queijo de manteiga em Exu.

Gustavo Rios disse...

bróder lupas. mitos foram feitos pra isso mesmo. cair, serem derrubados e depois a gente constrói uns tantos outros pra nosso deleite pessoal (e pra porra da vida ficar menos sem graça, ou sem sal, depende da moqueca). josé, meu velho. escrever é isso mesmo. leito de rio, retas de sol à pino, desertos e outras amplidões. de resto, é ondinha, firula e babaquice mezzo intelectual. força siempre