TRIPULANTES DESTA MESMA NAVE

domingo, 29 de junho de 2008

A INCORPORAÇÃO DE DEUS

Mitonho acordou e logo avisou: estou com um santo. O pessoal de casa logo tratou de dar razão aos meios para curar o rapaz. Os amigos, da turma de filósofos da Batateira, chamaram Chico Preto ao exame de Mitonho. Chico, com a abordagem dos grandes filósofos após permanecer mais de três horas em pesquisa direta, retornou ao convívio do restante da turma para esclarecimentos filocientíficos.

A reunião foi embaixo do frondoso de Timbaúba, virado para o canavial e junto ao perfume da vacaria do outro lado da cerca. Os amigos não queriam preâmbulos. Interessava-lhes tão apenas a síntese da ocorrência. Chico Preto, o maior filósofo que a Batateira teve, tem ou terá, foi direto.

- Ele incorporou Deus! Não foi um santo qualquer. Não se trata de intermediações. Incorporou a causa de todas as coisas.

Imaginem aquela notícia sobre os demais. Isso tornaria a dificuldade de libertar Mitonho algumas centenas de vezes maior. Não adiantaria chamar Dona Soledade, Maria Cruz, Raimunda Jacó, não adiantaria chamar o velho Pedro Belém. A tarefa era de dimensões além de todo Bispado, do Cardinalício, quem sabe o Papa? E como trazer o Papa até na Batateira. Chambaril apresentou razão:

- o Papa é a palavra de Deus na terra. Não custa nada ele dar uma mãozinha para o Mitonho.

- E quem vai trazer o Papa para a Batateira? Deixa de ser maluco, quando o Papa sai do vaticano é tanta gente que vem atrás, por onde passa junta mais, essa ruma de gente vai é afundar a Batateira. de Dona Maria foi logo defendendo a segurança do seu território.

A conversa andou pela solução, até que João de Barros resolveu fazer o que até ali ninguém fizera, perguntando a Chico sobre as evidências pelas quais Mitonho teria recebido Deus. Chico explicou:

- Mitonho sonhou que o mundo estaria mudando, que a muda era surda e ninguém prestava atenção. Acordou e logo viu na parede a fotografia da sua avó quando ainda bem mocinha. Aquela jovem permanente no quadro quando fora dele se encontra uma velha. Mitonho passou a achar que tinha o dom do tempo. E como a natureza da criação é o tempo, Mitonho achou que poderia corresponder a Deus, a própria criação em expressão.

Os filósofos entreolharam-se numa demorada e intransponível ignorância da oração de Chico. não jogaram uma pedras no filósofo pois eles mesmo é que o chamaram e conheciam esta mania do amigo de falar como os termos das metáforas bíblicas. Mesmo assim não acharam conclusiva a narrativa de Chico e este teve que manter o esforço explicativo.

- Antes da avó de Mitonho nascer não havia a fotografia. As pessoas nasciam, cresciam e morriam entre os olhos dos presentes e a memória destes. A própria pessoa tinha o espelho, mas o espelho lhe falava do momento da própria imagem. O resto era a memória e a memória é bondosa, sempre nos agrada. quando inventaram a fotografia, todo mundo passou a brincar de Deus. Nascia uma criança e logo fotografavam antes que o tempo lhe transformasse numa escolar e outras mais antes da adolescência e assim por diante. Passou-se a ter o poder de apreender os momentos até mesmo em movimento e a cores. E depois, eu soube, até com voz. Tudo isso passou a existir como se sempre tivesse existido. Eu e nenhum de nós nunca nos perguntamos como era antes da fotografia. Tinha a pintura, mas isso não é a mesma coisa, afinal a monarquia e clero eram pintados. Com a fotografia até nós somos fotografados. Qualquer um bole com o tempo, dividindo ele em duas partes: uma que não muda e a outra que se modifica. É como as nossas lembranças que guardam tanta coisa que não muda. E foi pelo motivo da foto de sua avó, que Mitonho num instante de gênio sentiu-se Deus. Mas passou, foi ele se lembrar da banalidade de nossas fotografias 3 por 4 que todos temos que tirar para a ficha da escola.

Depois do agito a calmaria. Depois do sonho de Mitonho a explicação de Chico. Como ninguém é de ficar calado mesmo, quem concluiu a trama foi Chico Breca:

- Muito bom. Bom de lascar. Assim não temos que trazer o Papa.

2 comentários:

Marcos Vinícius Leonel disse...

Muito massa, que beleza de texto.
Abraços

socorro moreira disse...

"Nossas lembranças ... Guardam tanta coisa que não mudam "
Elas fotografam... O escritor pinta !

Muito bom ,ler tudo que você escreve !