TRIPULANTES DESTA MESMA NAVE

quinta-feira, 31 de julho de 2008

A ENCENAÇÃO DO ASNO DE BURIDAN


Isso ocorreu na batateira. O esforço cultural da prefeitura, naquele ano, resolveu-se após intensos debates e até altas horas das noites sem mais nada para fazer. Afinal a solução: vamos levar o projeto de encenar a Fábula do Asno de Buridan com os alunos da Escola Amélia Pinheiro. Projeto pronto, secretário passou o jamegão nos documentos, o prefeito engavetou por semanas, afinal tinha muitas viagens a Brasília em busca de verbas e finalmente a aprovação. o dinheiro para as fantasias. E o burro? A pergunta mais grave feita ao déficit orçamentário da obra. a fantasia do burro era muito mais cara que toda a verba. Criatividade. Dizia, em alto e bom tom, o prefeito com o olhar turvo e fixo feito um sinal de trânsito vermelho.

Criatividade: pois então. Correram uma rifa de um Ipod descascado, fanho e gago, presenteado por um vereador decepcionado com o amor perdido. Material de terceira categoria e a pobreza da batateira deu seus trocados para financiar o projeto da prefeitura. O apurado quase não cobria a despesa, afinal rifa de pobre quase não paga o objeto rifado. Mesmo assim o financiamento estava completo, restava selecionar o elenco na escola, organizar o palco e platéia e, claro, ensaiar a peça. Aliás roteiro transcrito por dezesseis mãos em rodadas infindáveis de senhas e contra-senhas sobre a fábula. Afinal a peça.

E vinha o asno, manco pois a fantasia fora costurada com encurtamento de um dos lados, queixando-se de fome e sede, reclamando o sofrimento da vida. Quem assistia ao evento até imaginava que o asno teria sido aquele sorteado com o Ipod da geração de fundos. O pobre asno, desolado, sem solução nas possibilidades daquele palco suburbano. Nenhuma alma solidária para ao menos uma mão de milho aplacar-lhe a fome corrosiva. Nem uma caneca de água dormida para descer-lhe de esôfago a baixo, fria e plena de fartura, no vazio que a vida lhe armara. O asno era plenamente o Asno de Buridan. E vem o drama da escolha.

Amarram o asno entre um monte de capim e uma gamela de água turva,. Enquanto representação da fome o artista que o asno tinha em si era plena convicção. Uma representação inigualável no teatro regional e brasileiro. O asno mancava com os passos da falta de líquidos e sólidos. Sonhava com sonhos de valsas, com pães quentes amanteigados, com bifes suculentos sobre um morro de arroz e feijão. Sonhava o asno, que um artista da batateira tinha em suas entranhas, com taças cheias de caldo de cana gelado, com cerveja borbulhando na borda de canecões, canadas de sucos doces e apaziguadores. Por isso mesmo cena mais convincente jamais o teatro tivera notícia igual.

Mas o clímax da peça, aquela cena em que a fábula se realiza na sua totalidade foi um fracasso inigualável. O burro não se angustiava entre o capim e a gamela de água. Nenhuma indecisão de espírito que representasse o livre arbítrio em aplacar, primeiramente, a fome ou a sede. Não havia entusiasmo do artista, vestido de asno, para qualquer das duas opções. Ele se dirigia para o lado do capim, mas não desistia pelo motivo que o confundia em razão da sede na fábula. Na verdade, o artista fugia de alimentar-se de capim. Não desejava a água turva da gamela. Ao invés de uma indecisão pelo que primeiro se resolveria (fome ou sede), se viu a fuga das opções que lhe ofereceram na realidade do palco.

Após o espetáculo, na bodega de João do Tetéu, quiseram entender o fiasco do ator e este se explicou, curto e grosso:

- E capim é comida de gente?...

Um comentário:

socorro moreira disse...

Ah, se tivesse reprise !