TRIPULANTES DESTA MESMA NAVE

quinta-feira, 11 de setembro de 2008

GESTA




O correr da vida embrulha tudo.
A vida é assim: esquenta e esfria,
aperta e daí afrouxa,
sossega e depois desinquieta.
O que ela quer da gente é coragem..

Guimarães Rosa

Mitos são sonhos públicos,

sonhos são mitos privados.

Joseph Campbell

Era um menino na ingenuidade de seus seis anos. A imagem que lhe feriu os olhos, naquele dia vinte e sete de dezembro, do sequíssimo ano de 1958, lhe permanece ainda hoje indelével nas retinas, passados exatos cinqüenta anos. Um imenso cortejo fúnebre tomava toda a Praça da Sé e a Rua Padre Sucupira, dirigindo-se ao Cemitério Nossa Senhora da Piedade. O menino, atento, observava aquela serpente imensa, saracoteando qual um dragão chinês, composta de figuras tristes, circunspectas, sisudas. Sequer percebeu a gravidade do momento que ia bem além das suas fantasias infantis. Só muito tempo depois, soube que havia testemunhado o enterro de uma das personalidades mais míticas de todo Cariri: o Dr. Gesteira. Ele nos deixava no auge da experiência de vida, com meros cinqüenta anos . Neste tempo de revelação, o menino já havia se tornado médico. Por ironia do destino, adotado a mesma especialidade, Cirurgia Geral, daquele profissional estimado. Ele, prematuramente, naquele dia interrompia uma vida de quase vinte anos dedicados à salvar vidas, aplacar a dor, minorar o sofrimento do povo caririense.

Dr. Antonio José Gesteira nasceu em Recife há exatos cem anos. Formou-se no Rio de Janeiro em 1934. Fez sua especialização em Cirurgia Geral no Rio, no Hospital Hanneman. Trabalhou inicialmente em Terezina, depois em Passos em Minas Gerais e em Belém no Pará, além de Fortaleza . Aportou em Crato em 1940, trazendo consigo os conhecimentos cirúrgicos, até então totalmente desconhecidos no Cariri. Até sua chegada, os caririenses morriam de patologias simples como apendicites, rotura de cistos ovarianos, gangrenas. Começou a trabalhar no Hospital São Francisco, recém inaugurado há apenas quatro anos. Em 1950 desligou-se e fundou a Casa de Saúde Nossa Senhora da Conceição, junto com o Dr. Dalmir Peixoto, hoje ainda vivo e lépido e o Dr. Waldemar Penna que nos deixou ano passado. A Clínica funcionava na Rua Cel Luiz Teixeira, quase defronte à hoje Caixa Econômica Federal. São ainda nebulosos os motivos da saída do Dr. Antonio do Hospital São Francisco, possivelmente ligados a conflitos por espaço no Corpo Clínico.

Dr. Gesteira marcou profundamente a vida cratense nos dezoito anos que conosco permaneceu. Empregou todos os seus conhecimentos médicos e cirúrgicos , atendendo com uma presteza sem par todos os que o procuravam. A Casa de Saúde N. Senhora da Conceição faliu por duas vezes. Terminado seu apostolado entre nós , nada levou, deixou entre todos apenas a saudade que transcendeu gerações e ainda o faz hoje profundamente presente entre nós, tantos anos depois. Não bastasse sua atividade profissional, Dr. Gesteira era um intelectual do mais fino jaez. Poliglota, orador de recursos vastos, comovia e enfeitiçava platéias. Exercia ainda profunda atividade política, ligado a uma ala mais à esquerda da UDN, fizera-se, visionariamente, um anti-getulista fanático. Seus posicionamentos políticos levaram-no inclusive à prisão , tendo sido detido e levado à Fortaleza. Seu retorno ao Crato foi uma verdadeira apoteose, recebido com Banda de Música , por uma multidão de admiradores. Boêmio incorrigível, Dr. Gesteira conviveu com toda uma geração de grandes amantes da noite .

Toda esta trajetória de vida, no entanto, parece pouco para explicar a figura mítica em que Dr. Gesteira terminou por se transformar. Ele é o maior mito de toda a história da medicina caririense. Ainda vivo, comentavam que sua habilidade cirúrgica aumentava consideravelmente quando ele bebia.Seu túmulo é um verdadeiro ponto de oração no Cemitério local. A população faz promessas com ele e atapeta seu jazigo de flores durante todo o ano. Existe ainda um sem número de histórias da atuação do espírito do Dr. Gesteira em curas miraculosas, no âmbito do Hospital São Francisco e da Maternidade do Crato . Pacientes que aguardavam cirurgias e partos foram visitadas por um médico com todas as características do Dr. Antonio e simplesmente curaram, sem precisar de qualquer intervenção neste plano terrestre. Que ínvios caminhos levaram o médico ao mito, ainda consolidado e presente cinqüenta anos depois da sua morte?

Onde acaba o homem e começa o mito? A vida beneditina do Dr. Gesteira certamente contribuiu pra isso. Toda a história de humanismo, de desprendimento e de carinho para com o sofrimento do próximo certamente o tornaram presente na memória dos caririenses. O advento da Cirurgia para o Cariri, trazida por suas habilidosas mãos, o fez muito especial. Seu desaparecimento prematuro, por outro lado, consternou toda a cidade e há de ter contribuído para que sua presença permanecesse tão forte entre nós. Mas , passados tantos anos, desaparecidos muitos dos testemunhas da sua geração, fica difícil entender a permanência prodigiosa do seu nome no inconsciente coletivo caririense. Talvez o que mais contribuiu para tanto tenha sido a dimensão humana do nosso esculápio. Dr. Gesteira tinha suas qualidades e seus defeitos muito à mostra, muito visíveis e isto o tornava profundamente humano. Numa sociedade em que a hipocrisia, o escamoteio, o disfarce e a máscara sempre se mostraram como utensílios de primeira necessidade nas nossas relações, o desnudamento do Dr. Gesteira o tornou um ícone de humanidade. Seu próprio nome indica esta capacidade de gestar, de gerar. Ele provou os dizeres de Campbell de que é entrando dentro do abismo que se descobre os tesouros da vida e que é onde exatamente você tropeça que está escondido este tesouro.


J. Flávio Vieira







7 comentários:

Armando Rafael disse...

“Tendo Jesus ouvido isto, respondeu-lhes: Os sãos não precisam de médico e sim os doentes” (Marcos 2:17).

Dr.José Flávio:
Bela e oportuna, esta sua crônica resgatando um pouco - principalmente para as novas gerações - da figura mítica do Dr. Gesteira.
Sempre acreditei que a memória desse médico foi preservada no imaginário popular cratense graças a imensa caridade que ele teve ao tratar doentes pobres.
Sim, existem médicos que tratam com cuidado, carinho e dedicação, pessoas humildes.
(Alguém já leu alguma coisa sobre o médico venezuelano José Gregório? A Internet tem bom material sobre ele.)

Não cheguei a conhecer o Dr.Gesteira. Lembro-me apenas que depois de sua morte os livros de sua biblioteca foram colocados à venda. Meu pai - simples servidor da SUCAM, mas ávido leitor de livros, revistas e jornais - adquiriu vários livros que pertenceram a Dr.Gesteira. Um deles - uma biografia de Eva Peron - ilustrado com fotos coloridas, foi responsável por muitas horas de minhas leituras no tempo de menino. Na primeira página estava lá a assinatura do Dr. Gesteira...
Oportuno lembrar que esse grande médico foi enterrado em vala comum. Anos depois, um judeu-francês, Hubert Bloch Boris - que morou longos anos em Crato mandou construir o túmulo para abrigar os restos mortais de Dr.Gesteira.
No Dia de Finados esse túmulo é o mais visitado no Cemitério Nossa Senhora da Piedade, em Crato.
Dr.Gesteira, descanse em paz...

jflavio disse...

Caro Armando,

Comovente o seu relato. Trouxe dados que me eram desconhecidos e que vou acrescentar ao texto para memória de Dr. Gesteira. Li recente um artigo longo de Antonio Luiz, muito bem escrito e que creio deveria ser publicado na Itaytera. Nele me inspirei para falar do Dr. Gesteira. Fico abismado como tantas e tantas pessoas têm histórias para contar sobre ele, inclusive extensos relatos de curas e cirurgias espirituais pululam por todo Cariri.Não sabia da venda da biblioteca , nem da vala comum. Lembro porém de Seu Rafael, seu pai, muito amigo do meu. Lembro dele na Livraria Católica sempre com um livro debaixo do braço e um papo inteligente e agradável. Vcs têm a quem puxar, ele era um verdadeiro auto-didata e escrevia muito bem.Veja como vc , mesmo, sem ter conhecido o Dr. Gesteira tem a clara lembrança de ter lido um livro que lhe pertenceu! Comigo não foi diferente. Não tenho lembrança dele, meu pai, pessedista doente, não gostava dele. Mas até hoje, tem que se reconhecer, ele é o médico mais querido que já pisou a terra de Frei Carlos.

socorro moreira disse...

Tenho uma lembrança muito viva dos seus milagres .
Foi reconhecido em vida , como um grande cirurgião.
Minha avó Donana , reverenciou este homem , todos os dias da sua vida, e dizia: como se não bastasse competência , possue alma e cara ... belíssimas !
Os sinos da Sé nunca foram tão lastimosos , como no dia da sua morte .
Eu tinha uns cinco ou seis anos de idade ... mas fiquei triste !

Armando Rafael disse...

José Flávio,
Como você mora próximo ao Glauco, peço-lhe o favor de entregar a ele o artigo de Antônio Luiz para constar do próximo nº (será edição especial) da revista Itaytera, que será publicada pela Secretaria da Cultura do Ceará.

jflavio disse...

Caro Armando,

Vou tirar uma cópia e entregar ao Glauco. Inclusive o trabalho tinha sido feito para a possse de Antonio Luiz no ICC.

moesio disse...

Dr. José Flávio,

a Crônica sobre o Dr. Gesteira está muito boa!
Sou natural do Crato, mas moro há alguns anos (quase três décadas) em Fortaleza.
Lembro que vi mais de uma vez Dr. Régis Jucá (competentíssimo cirurgião cardiovascular, prof. da curso de Medicina da UFC, falecido em 2004)tecer elogiosos comentários sobre o Dr. Gesteira. Realmente o Dr. Gesteira foi um excelente e humano profissional da medicina caririense.

moesio disse...
Este comentário foi removido pelo autor.