Acordava com as passadas do leiteiro, ouvia o canto de estalo do galo campina, o troar pavão desde o alto da timbaúba, a porta da casa se abria com a avó indo para missa das cinco horas e o horizonte do vale do Rio Batateira me encontraria em algum lugar. Solto, entre uma manga e um rolete de cana, através do mato com o alçapão para ser armado, o sol subia até as horas da mesa de almoço. Uma sombra ao meio dia e pelas duas e trinta, pular na ponte do rio, jogar bila, soltar papagaio, subir o alto até avistar Juazeiro e quando o sol já tanto fizera do dia, igualmente feito o banho, o jantar e sentar-se na calçada da frente, para treze quilômetros de canavial a espera da lua cheia.
Desde tal planície tão cheia de detalhes como todo o universo, de repente me encontrava numa sala de aula, preso a uma carteira de estudar, fazendo o que outros me mandavam fazer. Alfabetizar-se é de fato uma imolação à civilização. Que labirinto mais sem graça, morno, nenhuma borbulha em ebulição ou qualquer veio de água gelada. Mas afinal veio um livrinho que dizia alguma, coisa, narrava algo de vida, chamava-se UPA UPA CAVALINHO. Depois aí pelo segundo ano do primário (não o segundo de estudo, naquele tempo de primeiro ano A, B e C) a coleção já tinha aventuras, pelas capitais do Brasil, pelas matas, as crianças acampando, sentindo a fauna e a flora da riqueza brasileira.
Pronto aquilo ficou na minha cabeça. Acampar. Nada mais sem sentido para quem vivia na zona rural. Mas acampar era diferente: eram as crianças. Nós, sem adultos tutelando, organizando o pouso, cozinhando, buscando água na fonte, lenha na mata, vendo, ouvindo e cheirando os animais. Ficou fermentando, até que aos 14 anos de idade, já na segunda série ginasial, organizamos uma turma e fomos acampar. Aproveitamos o feriadão de todos os santos e finados. A turma: eu, José Ribeiro, Moreninho (um rapaz do Piauí), Zé Soares, Haroldo Correia Lima, José Sérgio (era este nome mesmo? Não deu para relembrá-lo agora, era filho de seu Cirilo da Padaria), Renato e Ronaldo Brito. Pegamos um caminhão ao lado da igreja do Padre Frederico. Seguimos pela saída do Juazeiro, pela rua da cruz, dobramos na altura do pau do guarda e fomos entre os cocais e beirando canaviais na direção da Mata. Passamos pelo Engenho do Dr. Teles, pelo Posto da Secretaria de Agricultura, pela fazenda de Dr. Macário e finalmente chegamos na casa dos avós do Renato e Ronaldo. Já perto da Ponta da Serra.
Uma casa de fazenda caririense. No terreiro fizemos jogos de guerra. Brincamos ao redor da fogueira. E finalmente dormimos em nossos colchões no cimento frio da sala da frente da casa. Ao amanhecer, dia de finados, subimos um serrote que ficava mais ou menos um quilômetro da casa e escolhemos o espaço em que construímos a nossa clareira na mata. Armamos as barracas, trouxemos água num jumento e fizemos a nossa comida. Todo o sonho de acampamento em plena realização. Marchamos na mata e assim o dia se gastou tão depressa que às cinco horas chegaram com seus augúrios de anoitecer. Aí é que as provas de se fazer adulto aconteceram. Eu não sei bem através de quem é que a notícia chegou, provocando a cizânia no grupo.
A notícia era impactante. Nos idos dos anos trinta o Crato passara por uma epidemia de Peste Bubônica. Como era do mister destas epidemias muitas pessoas morreram e tiveram que ser enterradas até fora dos locais tradicionais. Por medo e precaução, naquele território em que nos encontrávamos, bem no alto daquele serrote, quase no espaço em que acampávamos fora o cemitério das vítimas da peste. E agora quem enfrentaria o território das almas, no próprio dia dos finados? Ainda mais de almas retiradas precocemente deste mundo. Quantas ainda poderiam visitar nossa noite nas barracas. Criou-se uma contestação geral. O acampamento teria que ser desfeito e, vencidos, retornaríamos para a casa.
Longas e decisivas deliberações. Retornar era se humilhar. Ao contrário era a preservação do perigo. Não, era desmentir todos os jogos da noite anterior. E quem iria enfrentar o sobrenatural, haveria salvação para nós aqueles pecadores ainda em fase quase imberbe? A verdade é que sobre paus e pedras, medo e até mesmo a falta de estrutura para enfrentá-lo, um grupo de três ou quatro decidiu ficar. Lembro que entre os que ficaram, eu, Haroldo, acho que o Moreninho e José Sérgio (?). Os demais debandaram em nome da fluidez do outro mundo e de sua imponderável relação com os vivos.
Ficamos como heróis encagaçados. Nunca rezamos tanto para as almas do outro mundo. Deixamos fogo aceso. Dormimos com os ouvidos alertas para o menor ruído. A qualquer momento algo poderia mudar tudo, mas ninguém ousaria comentar, o melhor era desviar do assunto. A rigor foi uma noite de grandes lutas, longa, com todos os nossos fantasmas interiores saltando pelos nossos ouvidos. O coração teve de muito trabalhar para mover da ponta dos artelhos inferiores até as raízes dos cabelos tantas emoções em ondas e calmarias. Nenhum ruído se escapava, parecia circular por dentro das nossas barracas. Tensos, afinal adormecidos e de repente acordados. A noite consumiu-se como um lento fogo de monturo. Mas o dia amanheceu.
O sol éramos nós. Igual ao galo Chantecler o dia nasceu por nossa causa. Naquele estado de coisa tomamos café não pelo sentido do gosto, mas pela valentia de uma covardia domada. O ar enchia os nossos pulmões com a plenitude de um Zepelin. Mais algum tempo, os que nos abandonaram vieram sentir o resultado da nossa aventura. Entre sentidos e consentidos fomos tratar de desarmar o acampamento. Descemos o serrote, chegamos na casa com ar de desafio e almoçamos feito um Ulisses ao final de sua Odisséia. Pelo início da tarde pegamos um caminhão e retornamos ao Crato. Éramos o mesmo grupo com o mesmo destino do qual saíramos. No dia seguinte estávamos na sala de aulas sem comentários, seja dos que ficaram ou dos que se retiraram no teatro de operações.
Desde tal planície tão cheia de detalhes como todo o universo, de repente me encontrava numa sala de aula, preso a uma carteira de estudar, fazendo o que outros me mandavam fazer. Alfabetizar-se é de fato uma imolação à civilização. Que labirinto mais sem graça, morno, nenhuma borbulha em ebulição ou qualquer veio de água gelada. Mas afinal veio um livrinho que dizia alguma, coisa, narrava algo de vida, chamava-se UPA UPA CAVALINHO. Depois aí pelo segundo ano do primário (não o segundo de estudo, naquele tempo de primeiro ano A, B e C) a coleção já tinha aventuras, pelas capitais do Brasil, pelas matas, as crianças acampando, sentindo a fauna e a flora da riqueza brasileira.
Pronto aquilo ficou na minha cabeça. Acampar. Nada mais sem sentido para quem vivia na zona rural. Mas acampar era diferente: eram as crianças. Nós, sem adultos tutelando, organizando o pouso, cozinhando, buscando água na fonte, lenha na mata, vendo, ouvindo e cheirando os animais. Ficou fermentando, até que aos 14 anos de idade, já na segunda série ginasial, organizamos uma turma e fomos acampar. Aproveitamos o feriadão de todos os santos e finados. A turma: eu, José Ribeiro, Moreninho (um rapaz do Piauí), Zé Soares, Haroldo Correia Lima, José Sérgio (era este nome mesmo? Não deu para relembrá-lo agora, era filho de seu Cirilo da Padaria), Renato e Ronaldo Brito. Pegamos um caminhão ao lado da igreja do Padre Frederico. Seguimos pela saída do Juazeiro, pela rua da cruz, dobramos na altura do pau do guarda e fomos entre os cocais e beirando canaviais na direção da Mata. Passamos pelo Engenho do Dr. Teles, pelo Posto da Secretaria de Agricultura, pela fazenda de Dr. Macário e finalmente chegamos na casa dos avós do Renato e Ronaldo. Já perto da Ponta da Serra.
Uma casa de fazenda caririense. No terreiro fizemos jogos de guerra. Brincamos ao redor da fogueira. E finalmente dormimos em nossos colchões no cimento frio da sala da frente da casa. Ao amanhecer, dia de finados, subimos um serrote que ficava mais ou menos um quilômetro da casa e escolhemos o espaço em que construímos a nossa clareira na mata. Armamos as barracas, trouxemos água num jumento e fizemos a nossa comida. Todo o sonho de acampamento em plena realização. Marchamos na mata e assim o dia se gastou tão depressa que às cinco horas chegaram com seus augúrios de anoitecer. Aí é que as provas de se fazer adulto aconteceram. Eu não sei bem através de quem é que a notícia chegou, provocando a cizânia no grupo.
A notícia era impactante. Nos idos dos anos trinta o Crato passara por uma epidemia de Peste Bubônica. Como era do mister destas epidemias muitas pessoas morreram e tiveram que ser enterradas até fora dos locais tradicionais. Por medo e precaução, naquele território em que nos encontrávamos, bem no alto daquele serrote, quase no espaço em que acampávamos fora o cemitério das vítimas da peste. E agora quem enfrentaria o território das almas, no próprio dia dos finados? Ainda mais de almas retiradas precocemente deste mundo. Quantas ainda poderiam visitar nossa noite nas barracas. Criou-se uma contestação geral. O acampamento teria que ser desfeito e, vencidos, retornaríamos para a casa.
Longas e decisivas deliberações. Retornar era se humilhar. Ao contrário era a preservação do perigo. Não, era desmentir todos os jogos da noite anterior. E quem iria enfrentar o sobrenatural, haveria salvação para nós aqueles pecadores ainda em fase quase imberbe? A verdade é que sobre paus e pedras, medo e até mesmo a falta de estrutura para enfrentá-lo, um grupo de três ou quatro decidiu ficar. Lembro que entre os que ficaram, eu, Haroldo, acho que o Moreninho e José Sérgio (?). Os demais debandaram em nome da fluidez do outro mundo e de sua imponderável relação com os vivos.
Ficamos como heróis encagaçados. Nunca rezamos tanto para as almas do outro mundo. Deixamos fogo aceso. Dormimos com os ouvidos alertas para o menor ruído. A qualquer momento algo poderia mudar tudo, mas ninguém ousaria comentar, o melhor era desviar do assunto. A rigor foi uma noite de grandes lutas, longa, com todos os nossos fantasmas interiores saltando pelos nossos ouvidos. O coração teve de muito trabalhar para mover da ponta dos artelhos inferiores até as raízes dos cabelos tantas emoções em ondas e calmarias. Nenhum ruído se escapava, parecia circular por dentro das nossas barracas. Tensos, afinal adormecidos e de repente acordados. A noite consumiu-se como um lento fogo de monturo. Mas o dia amanheceu.
O sol éramos nós. Igual ao galo Chantecler o dia nasceu por nossa causa. Naquele estado de coisa tomamos café não pelo sentido do gosto, mas pela valentia de uma covardia domada. O ar enchia os nossos pulmões com a plenitude de um Zepelin. Mais algum tempo, os que nos abandonaram vieram sentir o resultado da nossa aventura. Entre sentidos e consentidos fomos tratar de desarmar o acampamento. Descemos o serrote, chegamos na casa com ar de desafio e almoçamos feito um Ulisses ao final de sua Odisséia. Pelo início da tarde pegamos um caminhão e retornamos ao Crato. Éramos o mesmo grupo com o mesmo destino do qual saíramos. No dia seguinte estávamos na sala de aulas sem comentários, seja dos que ficaram ou dos que se retiraram no teatro de operações.
2 comentários:
"O Sol erámos nós. O dia nasceu por nossa causa" é infinitamente poético, como o texto todo, em grande forma.
abraços
José Sérvio :Filho de Gilvanda (prima irmã do meu pai) e Josè Cirilo.
Gilvanda irmã de Gutenberg Sobreira , pai de Bayard ; José Cirilo , irmão de Zenira Cardoso...
Puxar o novelo de linha do nosso povo é desenrolar o filme do passado e ativar emoções.
O jeito é pular do teu acampamento e passear , na Rua José Carvalho (a rua das Laranjeiras ) - a rua onde eu nasci !
Você ainda é um sol , do Vale !
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