Rejane Gonçalves
Não preciso dizer o que foi feito de minha vida sem Quasímodo. Todas as manhãs eu me lembro dos sonhos que à noite não me deixam dormir; o repetitivo sopro da boca de velhos, jovens, crianças, bebês e até mesmo fetos, a me assanhar os cabelos, a abrir caminhos nos meus ouvidos, a voz lamuriosa a me dizer com a boca emprestada de Quasímodo, as palavras num cata-vento, numa dança, num rodopio: escrevo como quem morre em casa, a vida teimando em não sair do quarto, a mãe aos prantos à cabeceira, o zelo dos amigos sentado no sofá da sala, o desespero dos que saem para fumar lá fora e deixam recomendado, qualquer coisa avisem.
Quasímodo sentou-se ao meu lado, mostrou as costas das mãos uma vez aos céus, uma vez à terra. Queria sentir a água que deveria aparecer num fino chuvisco, o suficiente para afastar as pessoas da praça, deixando-a só. Para nós. Somente ele e eu.
Batia-me nos braços quando os agitava um pouco e me chutava os pés se não os mantivesse cruzados. Tempos vão chegar em que dois pedaços de corda, retirados de um dos seus múltiplos bolsos, me imobilizariam pés e mãos e uma mordaça feita com o cachecol enrolado em sua cintura me vedaria a boca. Quasímodo, não se enganem, é a encarnação da delicadeza; apenas não suporta a atenção dos outros debruçada sobre ele ou sobre mim. Fiz o possível para matar, em Quasímodo, esses costumes, e por não conseguir, deixava que os soltassem e me prendesse. Só me rebelei no dia em que ele retirou a faixa que lhe prendia as pontas da trança e quis me vendar com o pano sujo de marrom. Não que eu tivesse medo de me ver cega, ou nojo do tecido quase petrificado de poeira, ou pavor das duas serpentes entrelaçadas, meio adormecidas na grande curvatura de suas costas, ou pesar de expor meu olfato, tão sensível, ao mau cheiro; o que me mortifica mesmo, não se enganem, é não ver Quasímodo; a única criatura que silenciosamente ouve e só depois pensa e passado muito tempo decide: eu falo. Eu não falo.
Na tarde enoitecida, senti na ponta do queixo o toque das mãos chuviscadas. Vejam, no deserto, Quasímodo senta-se ao meu lado e elas erguem meu rosto, obrigam-me a olhar para ele. Posso ter me enganado. Isto me acontece com freqüência, já a vocês, não. Ouçam, a voz me invadindo, há pouco, pertence a ele? O odor, eu sei, é o dele, e a hora de me chegar, também. Descubro alucinada que nunca o ouvi falar. Não conheço a voz de Quasímodo. Acabo de me dar conta de que não sei se ela é aguda ou grave, indiferente ou afetuosa. Vocês sabem, não me enganem. O que ele disse, as perguntas que, me asseguram, ele fez, e todos, sem exceção, tratam de repetir, poderiam ter sido estas, embora o tom não possua nenhuma parecença com a voz de Quasímodo, a qual, eu afirmo, nunca ouvi: não te perdes nos atalhos de minha escrita curvilínea, não tombas ao peso da pena que se entorta, não te cortas, de vez em quando, na aspereza dos traços, não manchas os dedos de sangue nos inúmeros ferimentos do papel, não percebes o ímã a me puxar a cabeça para baixo, a curvar meu pescoço, envergando-me o tronco, eu, Quasímodo, um arco, cuja corda posta ao rés do chão dificulta, ou mesmo subtrai para todo o sempre a oportunidade do arremesso; mesmo os menos ousados. Afirma, ainda, a boca de todos vocês num movimento uníssono que Quasímodo escreve como quem morre em casa. Eu que vivo sentada ao lado dele, confesso desconhecer por completo sua escrita. Nunca li Quasímodo. Ele nunca nada me mostrou.
Ainda conservo posto em minhas mãos o rosto dele nessa tarde de não mordaça. Antes de falar penso, por um longo tempo, se não deveria ter pousado meus cinco sentidos nas janelas e portas onde vocês habitam. Calculei mal a passagem das horas; vendadas estariam portas e janelas e meus olhos abertos não veriam ninguém. De qualquer maneira, fiz uso desnecessário de um pensamento quase matemático, pois múltiplas são as portas e as janelas, até mais que os bolsos de Quasímodo. Daí, consternada, eu lhe disse por trás da porta de um sorriso fechado: se te mortifica tanto escrever como quem morre em casa, se a pena, no percurso entre o tinteiro e o papel, sob tal peso, entorta, posso te livrar da casa.
Quasímodo puxou-me a corda das mãos e dos pés, olhou-me demoradamente a boca, como a certificar-se se ela estava ou não amordaçada e colocou nos bolsos, um muito distante do outro, os dois pedaços de corda. Levantou-se, antes que no relógio o tempo ditasse a hora, e com ele foi arremetida toda a sinuosidade de sua figura oblonga. Eu quis falar que não fizera por mal, fora apenas uma idéia absurda, tentativa desesperada de descobrir que poesia há em não ser Quasímodo, engano inocente em noite de pouca lua e muita ou nenhuma mordaça; eu quis dizer, eu quis muito dizer: teria sido na verdade a maior prova do meu amor por ti.
A última vez em que vi Quasímodo foi por partes. Metade e meia de sua figura já haviam dobrado a esquina; o pouco que sobrara ergueu um dos braços, lançou-o rápido e com desenvoltura para trás; pensei se não queria se desfazer dele, do braço, ou livrá-lo da manga suja do casaco encardido, ou deixá-lo ali para que eu o recolhesse, ou se não poderia ser apenas o gesto corriqueiro da cobra que some e larga a pele. Naquele mesmo braço, a mão estirou os cinco dedos, logo depois quatro deles desapareceram feito tivessem sido decepados e o dedo médio elevou-se em riste, esticou-se até que de todo fosse esgotada a capacidade de sua compridez.
Outubro/2008
Não preciso dizer o que foi feito de minha vida sem Quasímodo. Todas as manhãs eu me lembro dos sonhos que à noite não me deixam dormir; o repetitivo sopro da boca de velhos, jovens, crianças, bebês e até mesmo fetos, a me assanhar os cabelos, a abrir caminhos nos meus ouvidos, a voz lamuriosa a me dizer com a boca emprestada de Quasímodo, as palavras num cata-vento, numa dança, num rodopio: escrevo como quem morre em casa, a vida teimando em não sair do quarto, a mãe aos prantos à cabeceira, o zelo dos amigos sentado no sofá da sala, o desespero dos que saem para fumar lá fora e deixam recomendado, qualquer coisa avisem.
Quasímodo sentou-se ao meu lado, mostrou as costas das mãos uma vez aos céus, uma vez à terra. Queria sentir a água que deveria aparecer num fino chuvisco, o suficiente para afastar as pessoas da praça, deixando-a só. Para nós. Somente ele e eu.
Batia-me nos braços quando os agitava um pouco e me chutava os pés se não os mantivesse cruzados. Tempos vão chegar em que dois pedaços de corda, retirados de um dos seus múltiplos bolsos, me imobilizariam pés e mãos e uma mordaça feita com o cachecol enrolado em sua cintura me vedaria a boca. Quasímodo, não se enganem, é a encarnação da delicadeza; apenas não suporta a atenção dos outros debruçada sobre ele ou sobre mim. Fiz o possível para matar, em Quasímodo, esses costumes, e por não conseguir, deixava que os soltassem e me prendesse. Só me rebelei no dia em que ele retirou a faixa que lhe prendia as pontas da trança e quis me vendar com o pano sujo de marrom. Não que eu tivesse medo de me ver cega, ou nojo do tecido quase petrificado de poeira, ou pavor das duas serpentes entrelaçadas, meio adormecidas na grande curvatura de suas costas, ou pesar de expor meu olfato, tão sensível, ao mau cheiro; o que me mortifica mesmo, não se enganem, é não ver Quasímodo; a única criatura que silenciosamente ouve e só depois pensa e passado muito tempo decide: eu falo. Eu não falo.
Na tarde enoitecida, senti na ponta do queixo o toque das mãos chuviscadas. Vejam, no deserto, Quasímodo senta-se ao meu lado e elas erguem meu rosto, obrigam-me a olhar para ele. Posso ter me enganado. Isto me acontece com freqüência, já a vocês, não. Ouçam, a voz me invadindo, há pouco, pertence a ele? O odor, eu sei, é o dele, e a hora de me chegar, também. Descubro alucinada que nunca o ouvi falar. Não conheço a voz de Quasímodo. Acabo de me dar conta de que não sei se ela é aguda ou grave, indiferente ou afetuosa. Vocês sabem, não me enganem. O que ele disse, as perguntas que, me asseguram, ele fez, e todos, sem exceção, tratam de repetir, poderiam ter sido estas, embora o tom não possua nenhuma parecença com a voz de Quasímodo, a qual, eu afirmo, nunca ouvi: não te perdes nos atalhos de minha escrita curvilínea, não tombas ao peso da pena que se entorta, não te cortas, de vez em quando, na aspereza dos traços, não manchas os dedos de sangue nos inúmeros ferimentos do papel, não percebes o ímã a me puxar a cabeça para baixo, a curvar meu pescoço, envergando-me o tronco, eu, Quasímodo, um arco, cuja corda posta ao rés do chão dificulta, ou mesmo subtrai para todo o sempre a oportunidade do arremesso; mesmo os menos ousados. Afirma, ainda, a boca de todos vocês num movimento uníssono que Quasímodo escreve como quem morre em casa. Eu que vivo sentada ao lado dele, confesso desconhecer por completo sua escrita. Nunca li Quasímodo. Ele nunca nada me mostrou.
Ainda conservo posto em minhas mãos o rosto dele nessa tarde de não mordaça. Antes de falar penso, por um longo tempo, se não deveria ter pousado meus cinco sentidos nas janelas e portas onde vocês habitam. Calculei mal a passagem das horas; vendadas estariam portas e janelas e meus olhos abertos não veriam ninguém. De qualquer maneira, fiz uso desnecessário de um pensamento quase matemático, pois múltiplas são as portas e as janelas, até mais que os bolsos de Quasímodo. Daí, consternada, eu lhe disse por trás da porta de um sorriso fechado: se te mortifica tanto escrever como quem morre em casa, se a pena, no percurso entre o tinteiro e o papel, sob tal peso, entorta, posso te livrar da casa.
Quasímodo puxou-me a corda das mãos e dos pés, olhou-me demoradamente a boca, como a certificar-se se ela estava ou não amordaçada e colocou nos bolsos, um muito distante do outro, os dois pedaços de corda. Levantou-se, antes que no relógio o tempo ditasse a hora, e com ele foi arremetida toda a sinuosidade de sua figura oblonga. Eu quis falar que não fizera por mal, fora apenas uma idéia absurda, tentativa desesperada de descobrir que poesia há em não ser Quasímodo, engano inocente em noite de pouca lua e muita ou nenhuma mordaça; eu quis dizer, eu quis muito dizer: teria sido na verdade a maior prova do meu amor por ti.
A última vez em que vi Quasímodo foi por partes. Metade e meia de sua figura já haviam dobrado a esquina; o pouco que sobrara ergueu um dos braços, lançou-o rápido e com desenvoltura para trás; pensei se não queria se desfazer dele, do braço, ou livrá-lo da manga suja do casaco encardido, ou deixá-lo ali para que eu o recolhesse, ou se não poderia ser apenas o gesto corriqueiro da cobra que some e larga a pele. Naquele mesmo braço, a mão estirou os cinco dedos, logo depois quatro deles desapareceram feito tivessem sido decepados e o dedo médio elevou-se em riste, esticou-se até que de todo fosse esgotada a capacidade de sua compridez.
Outubro/2008
REJANE é amiga e desde os tempos de Recife tenho uma admiração pelo que escreve e pelo que não escreve ainda.
3 comentários:
Luiz,
Desegavete todos os textos da Rejane ... Ela é ótima !
Quando voltas, menino ?
Foi um Rio que chegou em tua vida ?
Saudades.
Estou navegando fora das ondas dos mares virtuais por um tempo para que as penas de minhas asas renasçam e outros voos me sejam possíveis. O Rio de Janeiro é um bom lugar porque as quero bem coloridas e reluzentes.
Um beijo saudoso com um leve sabor de beringela.
Gostei do quadro: " a gente se encontra aqui".
Você faz muita falta, bichinho ...
Traga, quando voltar, toda a colorida alegria do carnaval carioca...
Traga a sua arte, sua voz !
Beringela , levemnte azeitada é massa !
Bjo
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