TRIPULANTES DESTA MESMA NAVE

quarta-feira, 25 de março de 2009

PADRE CÍCERO E A REVOLUÇÃO INDUSTRIAL

Se Maomé não se vestisse como um Árabe, não tivesse a paixão pelas mulheres como eles, não se alimentasse com o fruto seco do damasco, nem usasse o leite de cabra, não seria um santo guerreiro dos desertos da Arábia. Se a pedra negra de Meca não fosse o que fosse, uma matriz muito antes da sujeição do muçulmano, não haveria sentido humano histórico e territorial para sua religião.

Como igual nos recorda os 165 anos do nascimento do Padre Cícero Romão Batista. Que existiu como marca singular do nordeste brasileiro, com a territorialidade de um vale fértil e suas rotas para os sertões. Com a rosa dos ventos simultaneamente apontando para a ordem católica deste as missões que colonizaram as terras indígenas; para o coronelismo sertanejo que explorava a agricultura e a pecuária; com os povos desgarrados da estrutura produtiva fundiária em crise com o capitalismo nascente nas primeiras metrópoles brasileira; para o expansionismo mercantil e industrial da Inglaterra.

Quando o Padre Cícero nasceu (1844) faltavam seis anos para o que, grosso modo, se considera o limite temporal da primeira fase da revolução industrial. Ele já nasce com os quatro elementos da matriz industrial prontos: a máquina a vapor (1769), o tear mecânico (1785), o barco a vapor (1805) e a locomotiva a vapor (1814). Como lembramos a revolução industrial é a fase mais estruturada do modelo de acumulação capitalista. Havia passado a sua fase primitiva, com a expulsão dos camponeses das terras comunais, com a empresa mercantil de exploração de outros continentes a base de prisioneiros, degredados, escravos e pequenos agricultores sem terra. Mas a onda da desestabilização da velha ordem feudal (e colonial) continuava a todo vapor, atingindo de modo retardado o novo continente (à exceção dos EUA que estava prestes a ficar simultâneo com a Inglaterra).

Eis parte substancial dos pontos cardeais de sua época conforme descrito na orientação daquela rosa dos ventos. De modo geral quando se diz economia, se diz política, ou até mesmo filosofia, estamos nos referindo à cultura. E as mudanças culturais têm historicidade própria e costumam enganar os historiados, acostumados a buscar datas simbólicas para entender as mudanças. Por isso é que as mudanças no nordeste brasileiro na época do padre Cícero tinham ritmos distintos, compostos por aparentes anacronismos e por ritmos acelerados em outras partes. Os desgarrados da insuficiência produtiva rural (especialmente crítica na estiagem) estavam associados à concentração da propriedade rural, às demandas e mudanças de prioridades no mercado do Atlântico e claro às primeira políticas modernizadoras especialmente a partir do século XIX. Na outra ponta a igreja católica no eixo da perplexidade de Roma com as graves mudanças deste a Reforma, sucessivamente as revoluções Inglesa e Francesa; o regime imperial e as guerras Napoleônicas. Lembremos, por exemplo, que o padre Cícero nasceu apenas dois anos antes da comuna de Paris. Isso pode explicar, a parte mais geral e substancial do conflito religioso por trás da base econômica desta liderança nordestina.

A questão da base econômica foi levantada muito bem por Ralph Della Cava em seu Milagre em Joaseiro. Entendendo tal como o plantio de algodão para suprir a indústria de tecelagem no continente europeu, especialmente o Inglês. O padre Cícero tinha 17 anos quando estourou a Guerra Civil Americana, um ano depois (1862) teve de abandonar os estudos em Cajazeiras em razão da morte do pai e quando a guerra terminava, ingressava no seminário da Prainha. Com esta guerra a indústria de tecelagem perdeu o seu grande fornecedor de algodão nas plantações do sul dos EUA. Ávidos por algodão, os ingleses estimularam o seu plantio no Brasil, especialmente no nordeste, no qual a planta se adaptava bem e os portos eram os mais próximos de Liverpool (no final do século XIX e início do XX, Campina Grande na Paraíba chegava a rivalizar com Liverpool em volume de negociação do algodão tanto em pluma como em caroço). Um adendo: a experiência inglesa com algodão no nordeste na verdade já vinha do século XVIII. Naquele século o Maranhão chegou a ser um grande fornecer em termos de arrobas de algodão para a indústria inglesa, estando com isso explicado a pujança da cidade de Caxias, a qual deu nome ao patrono do exército brasileiro (e daí a cidade Gaúcha).

Em resumo (sem analisar o papel do algodão na estrutura agrícola e pecuária nordestina) o território úmido que abrigava os desgarrados da estrutura fundiária, o carisma especial do Padre Cícero, considerando o próprio avanço relativo do Cariri em termos de economia e a brigas cearenses entre a oligarquia rural e a nascente classe média de Fortaleza, havia um arranjo que facilitava a concentração humana. Concentração, aí entra o papel do algodão, sustentada economicamente pela colheita e limpa do algodão por todo o nordeste. Ralph Della Cava chega a citar milhares de homens empregados em diversos estados sob as ordens do padre Cícero. Ao final destas atividades temporárias, a ordem de Juazeiro os absorvia de diversos modos, na perspectiva daquela rosas dos ventos. Em guerras no território, em formação de comunidades como a de Zé Lourenço e assim por diante.

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