TRIPULANTES DESTA MESMA NAVE

terça-feira, 23 de junho de 2009

Crato não há mais

O texto abaixo é um trecho da coluna de Fernando Rego no Terra Magazine. Fernando Rego foi professor de Filosofia na UFBA e morreu há alguns anos. Terra Magazine tem publicado periodicamente textos extraídos de seus livros em forma de coluna. A Solidão é o tema. O texto me tocou porque quase todos nós que moramos em cidades grandes quando estamos próximos da aposentadoria alimentamos a ilusão que a vida outonal seria bem melhor em uma cidade pequena. A calma , a cordialidade das pessoas são sempre citadas como virtudes inerentes à esses lugares. Cada vez mais penso que isso é uma ilusão e como dizia Drumond "Minas não há mais".

Nem estantes, nem quadros e nem cortinas impedem o reflexo do sol nas paredes brancas do quarto. A palidez e a magreza realçam o perfil aquilino do homem que está deitado. A dor obriga-o a contrair o rosto sulcado. Recostado nos travesseiros obtém a posição que lhe parece - sempre a dúvida presente - menos dolorida. Mas - ele sabe - o médico aumentara a dose de morfina.

Desejos não mais o atormentavam - como ocorrera outrora - quando o grande pecado o obrigara a vagar pelas ruas em busca de um olhar que cruzasse significativamente com o seu. Um dia, corroído pelo tormento, chegou mesmo a crer que, buscando retiro em um recôndito interior, tudo estaria resolvido. -Enganou-se. Em vão procurou exercer, da melhor maneira, o ofício de professor; mas o olhar zombeteiro dos rapazes que pressentiam seu desejo deixava-o intranqüilo. Um dia, em crise, escrevera ao mestre queixando-se da perversidade dos homens daquela cidade, ao qual aquele respondera: "Todos os homens são perversos". A resposta o obrigou a retrucar: "É verdade, mas os daqui são mais perversos do que os homens de qualquer outro lugar". Dessa maneira encerrou, não só sua passagem pela pequena cidade do interior, como também sua correspondência com o mestre.


Ele bem sabia que o mundo existiria sempre; independente de sua vontade. Os planetas continuam em órbita quer ele pense ou não sobre eles. Ele bem sabia que inexistem mistérios na natureza. Mistérios são ardis, muitas vezes inconscientes, da vontade humana. Não há uma necessidade lógica que fundamente o mistério. Ele bem sabia que o sentido de sua existência não deveria ser procurado na natureza, e sim fora dela. O fundamento do existir humano está ligado à explicação que sempre tem do mundo, à existência em geral.


Por se encontrar debilitado, sentia excessivo frio. Pássaros comiam o alpiste que colocara na janela, e a algaravia que estes faziam tornava-o feliz, levando-o a crer que a felicidade pertence às coisas do mundo sensível. A luz do sol esquentava seus pés. Se, porventura, nesse exato momento, alguma pergunta que transcendesse a sensação morna da luz solar me fosse feita, com certeza a resposta seria metafísica. Nesta resposta não existe nenhuma visão mística do mundo já que sou arquiteto das formas puras e simples. Respondi, apenas, devido à sensação agradável que sinto nos pés. E nada mais do que isso, pensou.


A busca da própria humanidade exigiu sofrimento. Nenhuma das grandes descobertas científicas o ajudou nessa contenda entre a loucura e a razão. Esta indagação o tornou estrangeiro, mesmo entre seus pares. Estrangeiro e bizarro; alcunha que lhe parecia costurada ao corpo, como uma segunda pele. Nem a morte conseguiria destruí-la. Mas o que importa tudo isso se o morto não tem ligação com os acontecimentos da vida, perguntou-se. O que morre torna-se indizível em relação aos acontecimentos vitais. A morte simplesmente não é, se comparada com a vida.


A porta abriu-se deixando passar um jovem em tudo mediano, menos nos olhos que saltavam das órbitas. Os dois conversaram, conversaram por quase uma hora. Em algum momento da conversa, o homem que estava deitado, chegou até mesmo a rir, quando o amigo imitou certa atriz de cinema que cantava músicas latinas, bastante exóticas, que combinavam com seus adereços.


O rapaz já estava saindo quando o homem lhe disse: "Não esqueça de dizer a todos os nossos amigos que fui muito feliz".


Assim que o rapaz partiu, com suas fantasias, ele olhou à janela buscando os pássaros que lá não mais estavam. E assim o homem morreu sozinho.



2 comentários:

Marta F. disse...

Maurício, debruçado em compor o perfil do seu pensamento, reclina-se por sobre o teclado, óticas para uma digestão demorada nas letras emprestadas por renomados pensadores.
Isto acrescenta, acrescento um abraço pra você.

Maurício Tavares disse...

Marta
aquele abraço!O rio de janeiro continua lindo. O rio de janeiro, fevereiro e março.