No país, substituíram-se a violência e a tortura como suposta condição para ter segurança e governar
A CORRUPÇÃO passou a ser condição da governabilidade. É essa a justificativa de dirigentes de partidos do governo para sua cumplicidade no enterro dos escândalos parlamentares. A diferença com o regime militar é uma só: substituíram-se a violência e a tortura pela corrupção como suposta condição para ter segurança e governar.
Corrupção e violência, ensinava o filósofo Norberto Bobbio, são os dois tipos de câncer que destroem a democracia. No regime militar sacrificou-se a democracia em nome da segurança, elemento da governabilidade. Hoje a situação mudou e se usa o mesmo pretexto para fazer engolir o conluio ou a indulgência com a corrupção. Não sendo apanágio apenas de um governo, o vício se agrava ano a ano.
Nem a seriedade dos últimos escândalos, que comprometem instituições inteiras, conseguiu alterar a complacência dos governos, que pode não ser eterna, mas tem se revelado infinita enquanto dura.
Outro escândalo, agora de caráter intelectual, é que os politicólogos julgam o sistema de “presidencialismo de coalizão” como perfeitamente funcional, pois produziria governabilidade. Aparentam-se os nossos sábios aos fundamentalistas do mercado, que também acreditavam na neutralidade moral do mercado, que seria autorregulável, capaz de se corrigir automaticamente.
Em ambos os casos, os resultados justificariam os meios. Contudo, o derretimento do mercado financeiro mostrou que as torpezas e as falcatruas dos operadores acabam por provocar degeneração funcional, destruindo a própria instituição. A moral e a ética não são adornos para espíritos delicados, mas componentes indispensáveis ao bom funcionamento de qualquer sistema.
Isso não vale apenas para os mercados. A Primeira República italiana, que resistira ao desafio de governabilidade devido à presença do maior Partido Comunista do ocidente, se desmoronou à luz da corrupção desvendada pela Operação Mãos Limpas. A República Velha brasileira afundou no pântano da corrupção eleitoral e foram os escândalos que puseram fim à carreira e à vida de Getulio Vargas.
Não passa de autoilusão a ideia de que a economia cresce e o país se desenvolve apesar da corrupção e dos escândalos. Também na Itália, o “milagre econômico”, o dinamismo, a inovação pareciam legitimar um sistema decadente. Com o tempo, a corrupção e o fracasso na reforma das instituições produziram o inevitável: a estagnação e o desaparecimento do dinamismo. Seria diferente aqui onde os mesmos vícios tendem a produzir idênticos efeitos?
Quando foi assassinado o juiz Giovanni Falcone, Bobbio chocou a opinião pública ao declarar que sentia vergonha de ser italiano e deixaria o país se fosse mais jovem. Recompôs-se depois desse momento de abatimento moral. Neste centenário do seu nascimento, a capacidade de se indignar do velho filósofo tem sido evocada ao lado da lição do grande poeta Giacomo Leopardi.
Numa das incontáveis horas amargas da Itália, dizia o poeta: “Se queremos um dia despertar e retomar o espírito de nação, nossa primeira atitude deve ser não a soberba nem a estima das coisas presentes, mas a vergonha”.
No panorama de miséria moral de nossas instituições, deve-se escolher entre a atitude de soberba e estima das coisas presentes da propaganda complacente e a vergonha regeneradora do país futuro.
RUBENS RICUPERO, 72, diretor da Faculdade de Economia da Faap e do Instituto Fernand Braudel de São Paulo, foi secretário-geral da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento) e ministro da Fazenda (governo Itamar Franco). Escreve quinzenalmente, aos domingos, nesta coluna.
A CORRUPÇÃO passou a ser condição da governabilidade. É essa a justificativa de dirigentes de partidos do governo para sua cumplicidade no enterro dos escândalos parlamentares. A diferença com o regime militar é uma só: substituíram-se a violência e a tortura pela corrupção como suposta condição para ter segurança e governar.
Corrupção e violência, ensinava o filósofo Norberto Bobbio, são os dois tipos de câncer que destroem a democracia. No regime militar sacrificou-se a democracia em nome da segurança, elemento da governabilidade. Hoje a situação mudou e se usa o mesmo pretexto para fazer engolir o conluio ou a indulgência com a corrupção. Não sendo apanágio apenas de um governo, o vício se agrava ano a ano.
Nem a seriedade dos últimos escândalos, que comprometem instituições inteiras, conseguiu alterar a complacência dos governos, que pode não ser eterna, mas tem se revelado infinita enquanto dura.
Outro escândalo, agora de caráter intelectual, é que os politicólogos julgam o sistema de “presidencialismo de coalizão” como perfeitamente funcional, pois produziria governabilidade. Aparentam-se os nossos sábios aos fundamentalistas do mercado, que também acreditavam na neutralidade moral do mercado, que seria autorregulável, capaz de se corrigir automaticamente.
Em ambos os casos, os resultados justificariam os meios. Contudo, o derretimento do mercado financeiro mostrou que as torpezas e as falcatruas dos operadores acabam por provocar degeneração funcional, destruindo a própria instituição. A moral e a ética não são adornos para espíritos delicados, mas componentes indispensáveis ao bom funcionamento de qualquer sistema.
Isso não vale apenas para os mercados. A Primeira República italiana, que resistira ao desafio de governabilidade devido à presença do maior Partido Comunista do ocidente, se desmoronou à luz da corrupção desvendada pela Operação Mãos Limpas. A República Velha brasileira afundou no pântano da corrupção eleitoral e foram os escândalos que puseram fim à carreira e à vida de Getulio Vargas.
Não passa de autoilusão a ideia de que a economia cresce e o país se desenvolve apesar da corrupção e dos escândalos. Também na Itália, o “milagre econômico”, o dinamismo, a inovação pareciam legitimar um sistema decadente. Com o tempo, a corrupção e o fracasso na reforma das instituições produziram o inevitável: a estagnação e o desaparecimento do dinamismo. Seria diferente aqui onde os mesmos vícios tendem a produzir idênticos efeitos?
Quando foi assassinado o juiz Giovanni Falcone, Bobbio chocou a opinião pública ao declarar que sentia vergonha de ser italiano e deixaria o país se fosse mais jovem. Recompôs-se depois desse momento de abatimento moral. Neste centenário do seu nascimento, a capacidade de se indignar do velho filósofo tem sido evocada ao lado da lição do grande poeta Giacomo Leopardi.
Numa das incontáveis horas amargas da Itália, dizia o poeta: “Se queremos um dia despertar e retomar o espírito de nação, nossa primeira atitude deve ser não a soberba nem a estima das coisas presentes, mas a vergonha”.
No panorama de miséria moral de nossas instituições, deve-se escolher entre a atitude de soberba e estima das coisas presentes da propaganda complacente e a vergonha regeneradora do país futuro.
RUBENS RICUPERO, 72, diretor da Faculdade de Economia da Faap e do Instituto Fernand Braudel de São Paulo, foi secretário-geral da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento) e ministro da Fazenda (governo Itamar Franco). Escreve quinzenalmente, aos domingos, nesta coluna.
Um comentário:
Postei este texto escrito pelo Ricúpero na Folha de São Paulo. O fiz considerando que desde a redemocratização o que mais se viu no país foram crises de corrupção. Desde a queda de Collor, os Anões do Orçamento, inúmeras CPI (sobre financiamento de campanhas, mídia, corrupção sexual de menores etc.); as denúncias da compra de Deputados para votar favorável à reeleição etc. Não vou acrescentar mais dado pois todos conhecem as denúncias de corrupção nos governos atuais, de municípios, estados e no âmbito federal. O interessante neste artigo do Ricúpero é justificativa da governabilidade como manutenção do status quo: no regime militar a violência e no atual a corrupção. Então é preciso efetivamente abordar esta situação da superação como o novo. Quem estiver no presente jogando toda a culpa de um período mais ou menos unifome no outro, apenas contribui para o argumento da governabilidade, seja no governo Sarney, Collor, Itamar, FHC e Lula. Seja oposição ou situação.
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