As transformações apareceram de forma insidiosa, assim como o cupim destroçando pouco a pouco uma biblioteca. Quando Matozinho, muitos anos depois, olhou para trás é que percebeu a inexorável ação do tempo. Não só a vila havia pouco a pouco mudado seu leiaute – bastava ver as antigas fotos do lambe-lambe Zèzinho do Papouco – os costumes tinham ido junto. Certamente a chegada da televisão foi um dos propulsores daquela reviravolta. Depois da TV , Matozinho nunca mais foi a mesma. Travestiu-se de ares modernosos embora, no fundo, ainda permanecesse profundamente provinciana. As mocinhas já não mais aceitavam roupas de costureira, queriam as pré-fabricadas com os últimos modelitos das novelas. E os adereços seguiram a mesma tendência: nada mais de gigoletti, de travessa no cabelo e de cara sem maquiagem. Até as velhas já ousavam abandonar os véus, os califons, as combinações e as anáguas. Os rapazes já se espelhavam nas bandas de rock e comentava-se que até mesmo alguns baseados já muitos tinham experimentado. E de nada adiantava o sermão do padre, o esporro dos mais experientes: o mundo velho estava perdido no mato e sem cachorro. Os matozenses recobriram-se de um ar de fidalguia, como se a vida de todos houvesse saltado de uma novela: cada um passou a se achar mais importante que o outro e estabeleceu-se uma epidemia de pabulagem desenfreada.
E foi exatamente nesta época que D. Generéia , que morava no centro, resolveu mudar-se para uma outra casa, numa rua mais afastada. O marido havia perdido uma sinecurazinha que mantinha na prefeitura e a coisa apertara. Viu-se Generéia numa sinuca de bico. Primeiro não podia passar por baixo ( e isso lá era papel de atriz de novela!) e aceder que saía por pura liseira e , mais, que estava se mudando para uma casa mais pobre sita num cuvioco , próxima à famigerada Rua do Caneco Amassado. Uma notícia dessas não carregava nenhum glamour, nem era digna de um script de mini-série. Espalhou, de peito aberto, que havia sido recomendação de Janjão da Botica, uma tentativa, de mudando de clima, melhorar a asma feroz e o chiado de peito de que Generéia assumiu ser acometida. “É uma questão de tempo, vou mais prá veranear e quando voltar não venho morar perto dessa rafaméia aqui, não, já estamos pensando em fazer um palacete na nossa chácara no pé da serra da Jurumenha” , disse uma Generéia orgulhosa e cheia de si , com cara de Odete Roitman.
Após a enfática declaração de Generéia, pulou no meio do terreiro um outro problema: a mudança. É que não existe neste mundo de meu Deus uma coisa mais desmantelada que mudança de pobre. Imaginem uma carroça repleta de cacarecos velhos, soltando , como uma medusa, perna prá tudo quanto é lado. E mais: tendo que ser providenciada em várias viagens, durante o dia, já que no escuro não há nenhuma condição de se fazer o translado. É como se , de repente, a família expusesse suas entranhas à execração pública. A necessidade de uma mudança com essas características, certamente contradizia os atuais padrões globais da cidade de Matozinho. Se ao menos houvesse um caminhão baú, levando os teréns tudo entocado no breu da madrugada! Mas carroça!
Manhãzinha chega o carroceiro “Paçoca” com sua carrocinha, acompanhado de uns três moleques para assessorar no penoso mister. Os vizinhos observavam de longe, mantendo distância regulamentar, esperando de dentes e língua afiados, o momento de pinicar o oratório da pábula companheira de rua. Generéia postou-se na janela e começou a irradiar a mudança, em voz alta. Era uma desesperada tentativa de minorar um pouco a caótica visão dos cacarecos dependurados, utilizando alguns recursos da publicidade. Quando “Paçoca” pegou a Tevezinha preto-e-branco de umas quatorze polegadas, Generéia gritou para que todos ouvissem:
--- Meu povo ! Cuidado com a TV de Plasma !
Logo depois, os assessores recolheram os brinquedos dos filhos e colocaram numa caixa de sapato : uma peteca, duas bolas de gude, um triângulo, uma carrapeta e um pião. Quando traziam para a carroça, Generéia alarmou:
--- Epa ! Cuidado prá não quebrar o Videogame dos meninos, viu?
Quando “Paçoca” pegou a chaminé do fogão de lenha, repleta de pucumã e arrumou aquele cone preto retinto no meio da carga, Generéia saltou de lá e alarmou:
--- Preste atenção, seu Paçoca ! Vê se não arrebenta minha coifa, joviu?
Logo depois, os três moleques, com uma dificuldade imensa, pegaram a jarra de barro cheinha de água e, cambaleando pelo peso, começaram a levar até à carroça para colocar em cima da cantareira que lá já estava acomodada, com uns quatro canecos pendendo pelas beiras. De repente, o pote liso escorregou e lascou-se no chão. Foi água para tudo quanto é lado. Do outro lado da rua, Zé Fubuia que observava tudo: o fato e a versão bradou a todos pulmões:
--- Acode minha gente ! O Gelágua de Generéia partiu-se no meio !
J. Flávio Vieira
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