Eliseu montara uma
pequena bodega em Matozinho. Estabelecimentozinho de periferia, com duas portas
que davam para rua e eram fechadas com
uma centena de cadeados, toda noite, por um comerciante temeroso de um rapa dos
malacas cada dia mais frequentes e ousados naquelas brenhas. Com o passar dos
anos e o crescimento da Vila, a bodega tornou-se cada vez mais central e nosso
empreendedor resolveu ampliá-la,
comprando uma casa vizinha e estendendo um puxado lateral. Após a reforma de
pobre, que durou uns três anos, Eliseu resolveu , impavidamente, colocar um nome mais
apropriado e menos brega. Convocou, então, “Pedro Brocha”, o mais importante
puxador de letras da Vila. Uns dois dias depois, avistavam-se, de longe, as letras garrafais abertas por Pedro, no frontispício
da antiga Bodega : “Mercadim Temo-Meno” e logo embaixo o slogan : “Se tá
liso , fale com Eliseu “.
Nosso
comerciante compreendia, perfeitamente, os meandros dos pequenos negócios de
interior. Precisava vender fiado, pois a clientela vive eternamente na
dependura, esperando o salário futuro, o
Bolsa Família ou o décimo terceiro. Para tanto risco, fazia-se necessário
vender com uma grande margem de lucro para cobrir os inevitáveis prejuízos dos
velhacos que estavam , sempre, não na camada mais pobre da população, mas entre
os mais remediados. Por outro lado, fazia-se mister fracionar as vendas a
granel, ampliando as possibilidades de compra de todos : uma colher de
manteiga, uma xícara de açúcar, dois dedos de óleo comestível, três gomes de
tangerina, uma talagada de café e por aí
se estendiam as variadas unidades de compra. Houve casos de Eliseu vender a clara de ovo para um freguês e a gema a outro.
Com
os ajustes necessários às peculiaridades de Matozinho, o negócio prosperou.
Eliseu comprou alguns imóveis na nova periferia da cidade e até um sitiozinho
próximo ao Açude do Sabugo, onde cultivava algumas fruteiras, quando conseguia
se desvencilhar do Mercadinho que não lhe dava trégua , nem nos fins de semana ,nem
nos feriados. Mesmo contanto com a ajuda de D. Eudóxia, a esposa, que se dividia
entre os trabalhos domésticos e os empreendimentos comerciais do marido.
O
casamento, de mais de trinta anos, já era uma instituição mais burocrática que afetiva.
O casal aprendera a se gostar, mas já não os unia aquele fulgor juvenil que
incendiava as fronhas dos travesseiros e sapecava as beiradas das cuecas e
calcinhas. Talvez, por isso mesmo, Eliseu ante uma Eudóxia de fogo arrefecido pela
ducha da menopausa, tenha arranjado uma gambiarra, se enrabichado de uma moreninha fogosa de uns
vinte e poucos anos. Chamava-se Zuleika, para os íntimos, como Eliseu, atendia
por Zuzu. Pernas parecendo troncos de aroeira, peitos duros, pontudos ,
ameaçadoramente, em riste, e uma bunda
enorme, de almofada; era impossível não se endoidar os cabeções diante daquela Deusa Afro.
Eliseu cedeu uma das casas para ela, fazendo
um contrato fictício para não despertar a desconfiança da esposa e, à noite,
passou seguidamente a sair e chegar tarde, sob o pretexto de que precisava
cuidar do sítio. Como sói acontecer nesses casos, a repetição sub-reptícia dos
meus hábitos termina por denunciar o crime. Cidadezinha pequena : povo de
língua grande! Não tardou chegar aos ouvidos de Eudóxia a história da teúda e
manteúda do marido. As portas do inferno, então, se abriram para Eliseu. A
mulher, como um cão farejador, não dava trégua. Aos poucos, foi cercando o
Lourenço e com ajuda de inúmeras amigas, montou um extenso dossiê sobre o caso
e, montada neste calhamaço, dia após dia, numa tortura chinesa, infernizava a
vida já tão atribulada do bodegueiro. Eliseu negava , negava, mesmo diante das
inúmeras evidências. Inexistiam, no entanto, provas materiais e, de posse desta
jurisprudência, ele mantinha uma cara de injustiçado, de perseguido, de
torturado pelas idéias persecutórias da patroa. Esta era a única defesa que lhe
restava. Começou a ter cuidados extras e os encontros com Zuzu, não mais se
faziam na casa dela ( por medo de flagra) , mas no sítio, no mato, em
propriedades afastadas de alguns amigos e numa outra residência que terminou
adquirindo, às escondidas, no caminho de Bertioga e que usava, periodicamente,
como um ninho de amor.
Semana
passada, no entanto, a porca torceu o rabo. Eudóxia permanecia no Mercadinho
durante todo o dia, só saía na hora do almoço, entre às 11 e 13 horas. Ciente
deste hábito da esposa, Zuzu tinha sido orientada a , mensalmente, ir justamente neste horário
pegar a feira dela. Alguém deve ter
soprado no ouvido de Eudóxia, o certo é que, no último sábado, no horário
previsto, Zuzu estava com o carrinho cheio, no caixa de Eliseu, trocando os
últimos combinemos para as noites seguintes, quando, de repente, a esposa
entrou feito bala, Mercantil adentro. Fitou
o casal, furiosa e, mãos na cintura, em feitio de açucareiro, aguardou o desfecho. Ia ser de graça? Estava,
então, constatada, definitivamente, a tramóia! Certamente ela não tinha
dinheiro pra pagar a feira, né? – pensou Eudóxia com suas metralhadoras
engatilhadas!
Eliseu, no entanto,
permaneceu tranqüilo, como se nada tivesse acontecido e Zuzu ainda pediu
licença , perguntando se era possível ainda acrescentar mais uma lata de Leite
Ninho. Claro que sim, minha senhora! -- retrucou o comerciante. Quando a
mocinha retornou, ainda sob as baterias
carregadas de Eudóxia que a fuzilava, olhando de cima abaixo, como se
perguntasse( com a pior certeza desse mundo) : “o que é que ela tem que eu não
tenho?” , um Eliseu calmo e tranquilo, dirigiu-se ao Caixa, tirou de lá setenta reais, estirou as notas despretensiosamente
para a deusa de ébano e agradeceu:
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Tá aqui seu troco, D. Zuleika!Recomendações ao seu esposo ! Obrigado pela freguesia e volte sempre, viu?
J. Flávio Vieira
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