TRIPULANTES DESTA MESMA NAVE

quinta-feira, 4 de outubro de 2012

Camelô



Houve um tempo ( antes do automóvel e da energia elétrica) em que a chegada de novidades no interior do Brasil estava nas mãos dos tropeiros. Eram eles que, varando o país  com suas alimárias, faziam as vezes dos Cargueiros, Trens, Correios, Rádio, TV , Jornal  e até das  Modistas. Tendo que continuar sua interminável jornada, deixavam suas funções na responsabilidade de pequenos varejistas e dos camelôs que, com poderes teatrais, eram os publicitários naqueles tempos remotos. Com voz tonitruante e recursos cênicos faziam aquele misto de  propagandistas-vendedores-radialistas, seduzindo os ouvintes para a compra das mais variadas  quinquilharias. O nome acredita-se vem do francês Camelot( vendedor ambulante), com raízes etimológicas no árabe HAMLAT: tecido de lã barato, comercializado pelos primeiros mouros que aqui aportaram.    O palco do camelô, em geral, era a Feira, onde ele se esparramava , como peixe em mar aberto. Com o advento dos meios de transportes mais velozes , o carro e o trem, as mercadorias começaram a ser comercializadas em pontos mais fixos. A Feira perdeu seu encanto e passou a ser , paulatinamente, freqüentada apenas pelo povaréu. As Casas Comerciais foram se especializando e o camelô foi perdendo importância. Continuou nas Feiras periódicas, agora com público mais reduzido e trabalhando em bicos, como animador , quase um palhaço, no comércio varejista.
                                                Passaram-se os anos e, com a globalização, as grandes redes de varejo engoliram os comerciantes menores, vieram os Shoppings, as galerias, as grandes lojas de departamentos e o camelô foi se tornando assim um objeto apenas de contemplação. Um fóssil daqueles áureos tempos: uma peça de museu como uma máquina de datilografia.  Mas como a história, em moto-contínuo, gosta dos círculos e das elipses, eis que os antigos tropeiros terminaram por ressurgir, agora travestidos de crediaristas. De motos ( o cavalo da atualidade) percorrem os lugares mais inóspitos, levando um sem número de objetos utilitários, de porta em porta, com venda facilitada, não muito diferente do que faziam seus ascendentes no início do Século XX.
                                               Bonito ver o camelô em ação, nas poucas Feiras Livres que ainda sobraram. Armam a banquinha, pacientemente, trazendo geralmente algum truque de abertura para atrair a população ao seu redor. Uma mágica, um animal de estimação como uma jibóia ou um macaco amestrado ( quando o IBAMA ainda não existia), a leitura de um Cordel Clássico. Depois da encenação, com uma considerável platéia ao redor, vem então : “Nossos Comerciais, por favor!”. Salta à nossa frente o produto a ser vendido, sem que ao menos tenhamos percebido. Técnica copiada depois pela TV e pelo Rádio.
                                               Pois , neste sábado, em memória dos muitos e muitos camelôs, Brasil afora, vou narrar três historinhas , uma que ouvi e duas presenciadas por mim, destes mágicos do ilusionismo e da prestidigitação.
                                               O camelô põe uma grande mala no chão, dela tira uma outra menor e já avisa:
                                               --- Eita ! Daqui a pouco a cobra vai sair de dentro da mala !
                                               Armando a banca, repete a ameaça dor diversas vezes, enquanto fita a mala menor, pretensamente portadora do risco ofídico. Vai também montando várias latinhas em cima da banca, coberta com um rótulo barato, onde se lê : “Pomada do Peixe Elétrico do Amazonas”. De repente, já com uma considerável platéia,  abre a mala menor e de lá retira uma grande jibóia que enrosca no pescoço. Com trejeitos teatrais, voz de locutor de FM, mas sem precisar botar sotaque sulista, explica as indicações do seu remédio:
                                               --- Pomada do  Peixe Elétrico do Amazonas, uma pechincha !  Cura:  sapiranga, tisga, morróia, pano branco, unha encravada, parto atravessado, escorrença de muié, esquentamento de homem, morféia, afuleimação na mãe do coipo, espinhela caída, defruxo, tosse braba, derrame, ferida braba, bicho de pé, crista de galo, escambichamento de véi, reuma, panarício,dor de dente, mordida de cobra e de cachorro doido, curuba e cezão.
                                               À medida que os ouvintes vão se aproximando e adquirindo a panacéia, o camelô continua com seu interminável querequequé. Depois de vender bastante, percebe, que alguns circunstantes ainda estão em dúvida sobre a capacidade milagrosa da sua panacéia. Dá então o tiro de misericórdia:
                                               --- Sim, meu povo, esqueci de dizer o mais  importante, essa pomadinha cura até ENFERMIDADE, viu ?
                                               Outro, em plena Feira, com vários produtos dispostos em uma esteira no chão: roupas, armadores, chave de fenda, martelo, raizada, temperos, arnica, parafusos , pregos, cabo para machado e enxada, Grita:
                                               --- Minha senhora, compre ! Gaste o dinheiro do marido, aproveite, senão ele gasta com as outras...
                                               Uma senhora vinha com o esposo, aparentemente atravessando crise no casamento e, diante do apelo, quase como afrontando ao safado do  companheiro, se aproxima e pára, observando pacientemente os objetos dispostos cuidadosamente na esteira. O marido fita o camelô com cara de poucos amigos. O vendilhão não perde a pose e emenda na bucha:
                                               --- Aproveite, senão ele gasta com as outras... coisas, as outras... necessidades da casa, né, meu amigo ? 
                                               Dirige-se para a patroa e completa, sem querer perder a freguesa:
                                               --- Porque a senhora sabe, né , D. Maria ? Todo homem é fiel, entre nós só tem cabra sincero e respeitador !
                                               Por fim, um outro camelô , recentemente, vendia numa feira, uma grande quantidade de panelas de alumínio. Aproxima-se um sujeito bem vestido, meio metido a falante, abaixa-se , examina as panelas com ares de expert em fundição , balança a cabeça e diz:
                                               --- Meu amigo, só tem essas? Pense numas panelas pebas! Alumínio velho fino, fraco, onde diabo você encontrou isso ? Uma bicha dessas não dura nem três anos: fura perde o cabo! Boas eram aquelas panelas antigas, duravam até vinte anos! Essas são uma porcaria.
                                               O camelô não perdeu o traquejo e, emendou, sem piscar :
                                               --- Meu amigo, nesse tempo do ronca que você tá falando, os casamentos duravam vinte, trinta anos. Hoje , no máximo,  dois aninhos. Logo os casais se apartam, vai um para um canto e o outro para o outro lado. Nós resolvemos fazer panela para durar só isso  : um casamento. Deus me livre de durar mais, termina dando uma briga danada na hora da partilha dos bens. Nãooooo!  Falar, nisso,  meu senhor, para quantos casamentos o senhor vai levar ?

J. Flávio Vieira

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