Acabo de me reunir , aqui no
Recife, com os colegas de Medicina, comemorando os trinta e cinco anos de
formatura. Como sempre acontece, há companheiros mais próximos e aqueles que
tínhamos visto pela última vez na colação de grau. Há sempre alguns com quem
sempre tivemos uma maior empatia e outros que privaram menos da nossa afeição.
A vida louca e breve nos dispersou pelo mundo, cada um em busca do seu sonho e
das suas realizações pessoais. Passados os anos, pomo-nos a perceber que a
história é mais importante que a geografia e vemo-nos imantados pela imperiosa
necessidade de buscar testemunhas de uma época áurea da nossa existência, onde
o sol brilhava mais intensamente, onde a felicidade colhia-se nos galhos mais
baixos das árvores, onde a longa estrada à frente impelia-nos a colher os
muitos frutos pendentes e à aventura chapeuzinhovermelhiana de buscar o caminho
da floresta ao invés das pacíficas veredas do rio. Muitas e muitas luas depois,
embora enveredando por trilhas diversas, terminamos por perceber que , à frente
, as aparentes paralelas novamente se cruzam e que, sem que tivéssemos
nos dado conta, percorríamos todos, um mesmo trajeto. Ei-nos , pois,
sobreviventes de muitas guerras, contabilizando os poucos espólios de tantas
batalhas, descobrindo ,atônitos, que o Shangri-lá não existe como fim, apenas
como meio. E mais : que o pote de ouro a que todos almejávamos não estava abaixo do arco-íris,
mas nas retinas de cada um dos caçadores de esmeraldas e que era tão-sòmente
a indefectível beleza multicolorida do próprio arco-íris.
O
tempo, este ourives incansável, lapidou as brutas rochas que tinha às mãos. A bateia
dos anos peneirou o cascalho dos ressentimentos, a ganga bruta das frustrações,
os seixos imprestáveis das paixões
menores. Até os sulcos inevitáveis das nossas feridas de guerra parecem ter
ganho uma luminescência especial, como um fogo fátuo dos nossos muitos sepultamentos
interiores. O inventário final do
garimpo : uma pepita brilhante e imaecível : A vida vivida e a ser vivida !
Folheando
o antigo livro de chamadas, bate-nos o amargo gosto da impermanência: contatamos que já muitos não respondem com o
seu : Presente ! Os que continuam na caminhada descobrem uma nova
responsabilidade: necessitam viver para si mesmos e por aqueles que acabaram, prematuramente,
caindo à margem do caminho. Fechado o balanço de tantos sonhos percebemos que a
memória de todo este milagre indefinível depende das testemunhares oculares
deste sonho : nossos colegas de travessia. Sem os muitos viandantes, a estrada não
existiria: a única prova material da magia da minha existência está na lembrança dos meus companheiros. Sem
eles minha vida não existiria; sem a minha memória, a existência de todos eles teria sido um mero
efeito especial de um filme b.
Celebrar
a intersecção das muitas retas que um
dia pareciam paralelas remete-nos aos insondáveis mistérios da nossa geometria
existencial. Parodiando Carl Sagan não parece ter sido mera coincidência que
diante da incomensurável dimensão do universo, da vastidão impalpável do tempo,
todos nós tenhamos divido juntos a mesma época, o mesmo chão e os mesmos
sonhos.
J. Flávio Vieira
2 comentários:
Zé Flávio: ao pegar a linha de um coleguismo universitário vai esticando-a ao infinito onde as paralelas se encontram. E parece descobrir que as retas não existem, apenas seriam marcações fictícias do planisfério universal onde todos nos encontramos. Essa é a natureza deste texto: iguais não são os colegas do Zé, mas o universo humano neste pulsar que se locomove, age, tonteia-se, torna-se pedante e egoísta, mas afinal retorna à sua humanidade mesmo que é as últimas ações visem congelar o incongelável direito de sempre se dar bem. Zé, diante das austeridades europeias, da quebra de regras e da farinha pouca meu pirão pinheiro, nos devolve a humanidade que ainda depende e se acomoda neste solitário planeta.
Abraço ao grande Dedé que já deve ter suas incontáveis comemorações na vida . Sentimo-nos todos como sobreviventes de alguma catástrofe intangível e isso, por fim, é o que apara as arestas e termina por nos banhar de alguma humanidade.
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