A
notícia não podia ser menos alvissareira. Uma semana antes da encenação da
Paixão de Cristo, em Matozinho, caiu aquele petardo : Caligário Cobongó estava de cama. Uma dengue o pegara de mal
jeito , estava quebrado como arroz de
terceira. Não achava canto, rebolando
dia e noite , parecia quebra-queixo em boca de banguelo.
---Devo
ter caído de um avião ou fui atropelado
por uma Scania ! Isso não pode ter sido obra de um mosquito só não, meu
amigo ! Vieram de ruma , como maracanã
atacando roça de milho ! Avisem na
igreja, esse ano eu passo !
A
confusão estava instalada. A Paixão era uma das festas mais populares de
Matozinho. Encenada sempre na semana santa, contava com a presença marcante de
Caligário, há mais de dez anos. Ele trabalhava como magarefe, era bombado,
alto, vistoso e cultivava uma barbona
fechada e longa, além de cabelos fartos que lhe caiam aos ombros. Cobongó fazia
o Cristo , seu tipão tornara-se inconfundível. O ator, diziam as más línguas,
nem descia do palco. Apesar de um trabalho de um dia só ao ano, levava os
outros trezentos e sessenta e quatro , todo pábulo , importante e não falava
sem impostar a voz. Difícil para a
produção da peça imaginar um Cristo outro que não se tratasse do nosso
magarefe.
A Associação do Sítio Pau-Dentro , promotora do evento, através do seu
presidente Raimundo Catingueira ( “Rai”, para os íntimos), chamou uma reunião
de emergência. E agora ? Logo o papel principal, se fosse ao menos um Zé de
Arimatéia, um Pilatos, um São José ! Mas logo Cristo ! Como arranjar um
substituto, um suplente à altura ? Várias possibilidades foram apontadas, mas
batiam sempre , no tipo físico do Mestre. Pedro Grande atuava direitinho, mas era tamborete de
samba. Mané Magro, um carpinteiro, extremamente responsável, já encenara vários
personagens, mas ultimamente andava gordo demais, parecido com um landrace. Júlio
Cananéia , o vigia da praça, taludo e forte, levava jeito para a coisa, mas era
perneta. Alguém, então, lembrou Jojó Fubuia, o maior pinguço da Vila. Jojó era
um varapau, tinha uma barba grande, mas descuidada, desasnado, só havia uma contra-indicação : bebia como
uma esponja. Rai, por fim, entre todas as hipóteses apresentadas, chegou à conclusão
que a melhor opção, apesar dos pesares, era mesmo Fubuia. Mas, claro, algumas
providências urgentes necessitavam ser feitas.
Procuraram
o pinguço, na manhã seguinte, cedinho. Ainda carregava o bafo de cana do dia
anterior. Rai , líder da comitiva do Pau-Dentro, explicou-lhe a questão.
Cobongó estava doente e precisavam dum ator substituto, um estepe de Cristo.
Jojó se interessou. Todo mundo persegue os seus vinte minutos de fama !
---
A gente leva a maior fé em você Jojó. Sabemos da sua capacidade ! agora, só tem
um problema. Você não vai poder beber até o dia da Paixão! Um Cristo bêbado
seria o fim ! Se topar, tá contratado!
Jojó
concordou, até porque tinha certeza que seria impossível vigiá-lo até lá.
Haveria sempre a possibilidade de uma escapadinha. A Associação, no entanto,
enquanto Jojó pegava na castanha, já
tinha engolido o caju. Rai falou com o Delegado Honorino Catanduva e pediu a
ajuda nesta empreita. Naquela manhã mesmo Honorino deu voz de prisão a Jojó e o
trancafiou.
---
Só sai do xilindró direto pra Paixão de Cristo, seu Jojó ! Esse é o único jeito
de você não encher a cara e cometer uma blasfêmia em plena Semana Santa. Joviu
?
Jojó não teve escolha. Tinha prometido ! Mas cinco
dias sem melar o bico, é demais ! No terceiro ,
já subia pelas paredes. Estava trêmulo e vendo bicho em tudo quanto era
canto. Dormia com o jacaré do lado. No
dia da Paixão, um sábado de aleluia, falava palavras estranhas , talvez em
aramaico. O figurino e a maquiagem foram preparados na própria cela. Rai
prometeu , então, a Jojó que, se tudo
saísse a contento, ao terminar a encenação o presentearia com dois litros do
seu sobrenome : Fubuia.
O
cortejo saiu na rua. Rai , para controlar mais nosso Salvador, vestiu-se de
centurião e andava ali pertinho dele, o chicoteando. As ruas de Matozinho
estavam repletas. Os rostos piedosos e contritos acompanhavam o sofrimento do
Filho do Pai. Jojó manteve-se até
tranqüilo. Os olhos mais esbugalhados do que sempre e as mãos trêmulas
derrubaram a cruz por muito mais vezes do que se previra no roteiro e no
Evangelho. Tentou ainda comer a toalha que Zé de Arimatéia trouxe para enxugar
seu rosto. Quis dar um pesqueiro em Pilatos na hora que Barrabás acabou
libertado. Na Ceia Larga bebeu o copo de vinho e tirou gosto com o pão
inteirinho. Quando Judas veio beijá-lo à
frente dos soldados, sapecou-lhe um beijo na boca, desses de dar enfarte em
Feliciano.
O
Gólgota foi preparado nas proximidades do Açude do Sabugo, na subida da Serra
da Jurumenha. O Cristo lá chegou jogando impropérios para tudo quanto é lado.
Foi pregado na cruz a contragosto. Rai, então, teve uma idéia salvadora. Fincada
a cruz, com o Filho do Pai se contorcendo mais do que se devia esperar, Rai
molhou o chumaço com cachaça ao invés de fel e levou-o aos lábios do Cristo. Os olhos do redentor, de
repente, brilharam e ele sorveu o fel
com tanta força que quase engolia o chumaço. O
centurião imaginou que assim o
acalmaria até o final da crucificação. Passados alguns minutos, com o Filho do
Pai ainda lambendo os beiços e em busca de mais fel, ele gritou
desesperadamente a frase sagrada ( um pouco adaptada, claro):
---
Rai ! Rai ! Por que me abandonastes ?
E,
demonstrando toda vocação para o sacrifício,
berrou a todos pulmões :
---
Mais fel ! Mais fel ! Eu quero mais fel !
J. Flávio Vieira
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