Enxugando gelo
Vocês já devem
ter percebido a grande polêmica que invade as redes sociais. A Frente Nacional
de Prefeitos, desde o início do ano, vem
pressionando o Governo com o fito de
contratar médicos estrangeiros para atender ao SUS, principalmente nos grotões
mais inóspitos do país. Existe, pois, uma mobilização no sentido de contratar
seis mil médicos de Cuba e Portugal,, principalmente, na busca de solucionar
essa demanda historicamente consolidada.
Diversas Entidades Médicas, capitaneadas pelo Conselho Federal de
Medicina, se puseram , imediatamente, por razões técnicas, contrárias à
iniciativa. A Direitona brasileira, por sua vez, range os dentes e espuma, sempre que soa o nome Cuba nos ares. Nem lhes
interessa muito discutir a questão, pensa , imediatamente, que Fidel está vindo
com seus guerrilheiros invadir o país e
comer criancinhas. Há razões plausíveis
do lado das entidades médicas, dos prefeitos e do Governo Federal para adotarem
uma ou outra postura. Interessa-nos dissecar anatomicamente o problema e tentar
encontrar caminhos em meio ao tiroteio de lado a lado. Até mesmo porque ,
exatamente no meio do fogo cruzado, encontra-se a população mais necessitada,
sempre baleada,ferida mas, mesmo assim, usada como massa de manobra nessas intrigas e
arranca-rabos dos cachorros maiores.
O Brasil tem hoje 400.000 médicos ,
uma proporção de exatamente dois esculápios para cada 1000 habitantes: o dobro
da necessidade mínima preconizada pela OMS.
A grosso modo esta estatística demonstra que temos profissionais suficientes
no país para atender a nossa população. Existem, no entanto, filigranas que
precisam ser avaliadas. Possuímos, por outro lado, um grande problema de
distribuição. Os médicos no Brasil, na sua maioria, residem nos grandes Centros , nas Capitais, no litoral. 72% desses estão fincados nas Regiões Sul e
Sudeste. Em São Paulo existe um médico para cada 239 habitantes, em Roraima um para cada 10.306 almas. No Amazonas, um estado
de enorme dimensão territorial, 88% dos
médicos residem em Manaus. O acesso aos cuidados médicos depende assim,
intrinsecamente, da nossa geografia. Se você mora no interior do Brasil e nas
regiões Nordeste e Norte certamente se verá em grandes dificuldades quando
precisar de consultas, exames ou internamentos. Vamos, amigos, para ter uma
visão mais abrangente, tentar entender a perspectiva de cada uma das partes
envolvidas .
Os governantes dos estados com menor
oferta de médicos se vêem politicamente cobrados pela população, no sentido de
ampliar a oferta de profissionais. Acossados pela desassistência e sua
inevitável conseqüência nas urnas, pressionam as esferas superiores no sentido
de minorar o problema. Eles sabem, perfeitamente, que não é apenas o salário
ofertado o imã suficiente para atrair profissionais: a questão é bem mais
complexa. Compreendem que o grosso do atendimento está sendo feito por pajés,
meizinheiros, “cientistas”, balconistas de farmácia, rezadores. Todos sem
nenhum diploma que pudesse ser revalidado. Depreendem daí , rapidamente, que
qualquer médico, com qualquer nível de qualificação, é melhor que médico
nenhum.
As Entidades Médicas, que têm a
função precípua de regulamentar a atividade no país, não se sentem capazes de validar diplomas
estrangeiros , sem saber , realmente, como o profissional foi formado e qual
seu nível de qualificação. Mais cedo ou mais tarde, fechando os olhos para
isso, percebem que os Conselhos se verão atulhados de processos éticos e penais
, o que termina por colocar ( bons e maus profissionais) na mesma corda bamba, como farinha de um mesmo
angu indigesto.
Já o Governo Federal, de há muito , tem se
incomodado com essa realidade da má distribuição de médicos no país. Desde a
famigerada Revolução de 64, vem fazendo proliferar as Escolas Médicas no
Brasil. De 2000 a 2010 as Faculdades de Medicina dobraram por aqui. Na sua
maior parte, privadas. Hoje temos quase duzentas. Ingenuamente, imaginavam nossos governantes que
inflacionando o mercado de profissionais, a competição aumentaria e a
distribuição se faria imperiosa. Não foi isso que aconteceu. Até os médicos
estrangeiros em atividade por aqui estão mais concentrados no Sul e Sudeste. Médicos
aqui se formam para tratar quem pode pagar. Formam-se especialistas e não
generalistas: apenas 0,5 % dos médicos brasileiros são especialistas em
Medicina Preventiva e Social. E mais : preparam-nos para tratar e não para prevenir. Ademais, o governo interroga as Entidades
Médicas : Por que exigir qualificação dos estrangeiros apenas ? O PSF no Brasil se compõe, basicamente, de médicos recém formados e aposentados. Passariam no
teste do Conselho Federal ? é importante
lembrar que o Governo traz junto o apoio
da Organização Pan-Americana de Saúde ( OPAS) e há uma verdade indiscutível: no
que tange à Medicina Preventiva , os médicos cubanos são extremamente bem
capacitados.
Os médicos brasileiros,
por sua vez, isoladamente ou em grupo,
protestam contra a contratação dos estrangeiros. Defendem uma certa reserva de
mercado. Poucos, no entanto, por
qualquer preço que lhes fosse oferecido, com a maior estabilidade possível,
deixariam o conforto da beira mar e dos recursos mais modernos que a Medicina
oferece, para se enfurnarem, como bandeirantes, naquilo que chamam de fim de
mundo. As novas gerações de esculápios são muito mais cartesianas que
hipocráticas.
O mais importante, no
entanto, ao meu ver é o entendimento que qualquer solução que se tome, com ou
sem estrangeiros, é perfeitamente emergencial e temporária. Os médicos
estrangeiros , se vierem, não ficarão definitivamente e, mesmo se receberem
visto permanente, que garantia teremos que permanecerão nos grotões do Brasil ?
A grande pergunta que permanece no ar é : como fixar nossos esculápios em todo
o Brasil, com uma distribuição de profissionais menos perversa ? Como diminuir
a volatilidade nos PSF ? Se é o mercado a grande fábrica das vocações médicas,
é para ele que nos devemos voltar. Não é tão-somente o salário que atrai o
médico. A coisa é bem mais complexa e passa por estabilidade no emprego,
possibilidade de ascensão funcional,
qualidade de vida , horizontes amplos de exercício de uma Medicina moderna, com formação continuada.
Precisaríamos, assim, ter uma carreira federal , de preferência com dedicação
exclusiva, regulamentada trabalhisticamente, com começo, meio e fim claros e,
mais, salário muito atraente para oferecer aos nossos médicos do Programa Saúde
da Família. Teríamos a possibilidade de revitalizar a especialidade de Médico
de Família e de Medicina Preventiva e
Social. Já tivemos algo parecido na história com a Fundação SESP. O grande
gargalo parece ser, mais uma vez, o subfinanciamento da Saúde. Só no Ceará
necessitaríamos de algo em torno de 2300 profissionais.
O SUS, com todas as
críticas que se lhe faça, conseguiu, em pouco mais de vinte anos, mudar
radicalmente para melhor nossos Indicadores de Saúde. Doenças de controle
Vacinal desapareceram, a Mortalidade Infantil teve um decréscimo vultoso, a
Esperança de Vida melhorou de forma impressionante. Já pensou se houvesse
orçamento suficiente ? Continuamos, em algumas questões como a da distribuição,
a malhar em ferro frio: não tocamos nas raízes mais profundas dos nossos
problemas. Com ou sem estrangeiros, ainda permanecemos enxugando o gelo na
esperança inglória de um dia secá-lo, agora com toalha importada.
J. Flávio Vieira
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