“E, aquele
Que não morou nunca em seus próprios abismos
Nem andou em promiscuidade com os seus fantasmas
Não foi marcado. Não será exposto
Às fraquezas, ao desalento, ao amor, ao poema.”
Que não morou nunca em seus próprios abismos
Nem andou em promiscuidade com os seus fantasmas
Não foi marcado. Não será exposto
Às fraquezas, ao desalento, ao amor, ao poema.”
Manoel de Barros
Raimundo
Arruda Sobrinho, um velhinho simpático de 74 anos, viveu os últimos vinte anos,
como morador de rua, no canteiro central da avenida Pedroso Morais, na Zona Oeste de São Paulo. Nascera no
Tocantins , filho de um vaqueiro, viera tentar a sorte na capital paulista,
ainda rapazinho , após ser reprovado na segunda série ginasial. Como
todo migrante, meteu-se nas mais variadas profissões, desde
jardineiro a vendedor de livros
velhos,inclusive com passagens em hospitais psiquiátricos Tentou a vida ainda
como migrante ilegal no Paraguai, na Argentina e no Uruguai . Até 1978 já
computava mais de quatorze endereços, quando , definitivamente, fez da rua seu
bangalô. Em 1993, por fim, adotou o canteiro central da avenida Pedroso Morais,
como seu lar. Barba longa e desgrenhada, higiene precária, roupas em
frangalhos. Ali, na dura selva urbana, conviveu com a fauna típica do submundo
brasileiro : esmoleres, bêbados, prostitutas, bandidos, traficantes,
descuidistas, menores abandonados e adolescentes delinquentes de classe média jogando o seu
esporte preferido : churrasco de mendigo.
Recentemente, Shalla Monteiro, com o aguçado fato dos
publicitários, interessou-se pela
história de Raimundo e por seus escritos, e terminou conseguindo localizar um
irmão dele em Goiânia. O irmão, com muito esforço, conseguiu tirá-lo da rua e
lhe proporcionar uma moradia digna, com o precioso calor da família. Arruda já
se acostumara àquela jaula e temia sair da selva onde já aprendera a viver
ou sobreviver aos lobos e aos abutres.
A
poesia de Raimundo é caótica e
fragmentária. Uma extensão da sua vida : um mosaico de cacos e
estilhaços de momentos . Literariamente
não parece carregar grande valor . Rescende, no entanto, um imenso peso
humanístico e artístico. A Arte para ele foi redentora. Sobrinho, como uma
Sherezade moderna, foi escrevendo, por mais de vinte anos, suas histórias para não ser trucidado pelo
Sultão que se chamava , agora, Miséria.
Linha após linha, página após página foi desfiando suas mais de 7300 noites. Ele é uma espécie de Arthur Bispo do Rosário
da Literatura. Diante de um mundo cruel e hostil, criou um universo poético
paralelo e para lá se mudou. Viveu e sobreviveu literalmente da sua Arte por
muitos e muitos anos. Residiu nos seus abismos mais abissais e conviveu promiscuamente com todos os seus
fantasmas, talvez tenha sido por isso mesmo que a Poesia se lhe tenha oferecido voluptuosamente como
uma fêmea no cio.
J. Flávio Vieira
Nenhum comentário:
Postar um comentário