TRIPULANTES DESTA MESMA NAVE

quinta-feira, 23 de maio de 2013

O Condicionado



“E, aquele
Que n
ão morou nunca em seus próprios abismos
Nem andou em promiscuidade com os seus fantasmas
N
ão foi marcado. Não será exposto
Às fraquezas, ao desalento, ao amor, ao poema.”
Manoel de Barros

                                   Raimundo Arruda Sobrinho, um velhinho simpático de 74 anos, viveu os últimos vinte anos, como morador de rua, no canteiro central da avenida Pedroso Morais,  na Zona Oeste de São Paulo. Nascera no Tocantins , filho de um vaqueiro, viera tentar a sorte na capital paulista, ainda rapazinho , após   ser reprovado na segunda série ginasial. Como todo migrante, meteu-se nas mais variadas profissões,  desde  jardineiro a  vendedor de livros velhos,inclusive com passagens em hospitais psiquiátricos Tentou a vida ainda como migrante ilegal no Paraguai, na Argentina e no Uruguai . Até 1978 já computava mais de quatorze endereços, quando , definitivamente, fez da rua seu bangalô. Em 1993, por fim, adotou o canteiro central da avenida Pedroso Morais, como seu lar. Barba longa e desgrenhada, higiene precária, roupas em frangalhos.   Ali, na dura selva urbana,  conviveu com a fauna típica do submundo brasileiro : esmoleres, bêbados, prostitutas, bandidos, traficantes, descuidistas, menores abandonados e adolescentes delinquentes  de classe média jogando o  seu  esporte preferido : churrasco de mendigo.
                                  
A história de Raimundo não é tão diferente da de outros tantos desafortunados da sorte que, órfãos de família , de emprego, de amigos e de amparo social, terminam por sujar, incomodamente,  a paisagem das grandes metrópoles. Moram numa outra dimensão , como se prematuramente tivessem morrido e , agora, invisíveis, vagassem como zumbis pelas praças e pelas ruas. Alguns fatos específicos, no entanto, diferenciam a vida de Arruda e que terminaram por fazer com que a história, estranhamente,  findasse com final feliz. Raimundo, sem mais nem porque, começou a escrever, quase que continuamente, aquilo que ele denominou de minipáginas. Redigia e ia oferecendo aos transeuntes que por ali passavam, em retribuição a alguma esmola por eles oferecida. Algumas, no entanto, colecionou cuidadosamente em  caderninhos, preparados com papel de embrulho. Escrevia a qualquer hora,  nada o atrapalhava, nem mesmo o barulho dos carros que freneticamente cruzavam ao derredor. Se chovia, enfurnava-se num plástico e continuava seu mister , sentado numa lata de dezoito litros. Utilizava um pseudônimo : “O Condicionado”. Condicionado a viver ao relento, a lutar diuturnamente contra as feras da floresta urbana, a sobreviver entre trapos e migalhas.
                                    Recentemente,  Shalla Monteiro, com o aguçado fato dos publicitários,  interessou-se pela história de Raimundo e por seus escritos, e terminou conseguindo localizar um irmão dele em Goiânia. O irmão, com muito esforço, conseguiu tirá-lo da rua e lhe proporcionar uma moradia digna, com o precioso calor da família. Arruda já se acostumara àquela jaula e temia sair da selva onde já aprendera a viver ou  sobreviver aos lobos e aos abutres.
                                   A poesia de Raimundo é caótica e  fragmentária. Uma extensão da sua vida : um mosaico de cacos e estilhaços de momentos .  Literariamente não parece carregar grande valor . Rescende, no entanto, um imenso peso humanístico e artístico. A Arte para ele foi redentora. Sobrinho, como uma Sherezade moderna, foi escrevendo, por mais de vinte anos,  suas histórias para não ser trucidado pelo Sultão que se chamava , agora,  Miséria. Linha após linha, página após página foi desfiando  suas mais de 7300 noites.  Ele é uma espécie de Arthur Bispo do Rosário da Literatura. Diante de um mundo cruel e hostil, criou um universo poético paralelo e para lá se mudou. Viveu e sobreviveu literalmente da sua Arte por muitos e muitos anos. Residiu nos seus abismos mais abissais  e conviveu promiscuamente com todos os seus fantasmas, talvez tenha sido por isso mesmo que a Poesia  se lhe tenha oferecido voluptuosamente como uma fêmea no cio.

J. Flávio Vieira

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