J. Flávio Vieira
Até cortar os
próprios defeitos pode ser perigoso.
Nunca se sabe qual é o defeito que sustenta
nosso edifício inteiro.
Clarice Lispector
Não
tem bom sem defeito, já reza a doce
filosofia popular. Como caju, qualquer vivente deste mundão sem fronteiras, tem
sempre um certo travo. Fossem os homens todos puros e imaculados, tornar-se-iam,
quem sabe, igualmente insípidos e insulsos. A impureza é que os faz diferentes
e únicos, que põe algum tempero no caldo que, claro, dependendo da intensidade,
pode torná-lo saboroso ou intragável. A grande arte da vida tem seus segredos
nesta cuidadosa cocção das nossas qualidades e extravagâncias. Carregar nossa jornada apenas com virtudes
pode nos tornar santos, mas perfeitamente assépticos. Faz-se mister dependurar,
pelas beiradas, algumas imprecisões,
algumas falhas e incorreções que terminarão funcionando como a ameixa no pudim
de leite.
Emengardo
Loyola sabia disso por mera intuição. Ao longo de toda vida buscou dosar , com
balança de precisão, predicados e pecadilhos. Transparecia, com algum
estardalhaço suas qualidades : trabalhador incansável, pai de família carinhoso,
uma certa carolice de papa-hóstia. Já as imperfeições apareciam algumas
maquiadas e outras guardadas em cofre forte e sem senha. Percebia-se que era um
pouco pão-duro, meio rapa de sola. Comentavam, também, os amigos, das suas escapadelas, passando por baixo das
cercas de arame farpado do casamento. Havia, por outro lado, um mistério
difícil de desvendar. Emengardo não era rico, mas levava uma vida bastante
confortável. Tinha casa própria, carro do ano, os filhos estudavam em boas
escolas, a mulher não trabalhava por opção e contavam-se inúmeros imóveis de sua propriedade. Trabalhava no setor de
contabilidade de uma fábrica de sapatos há muitos anos. Auferia salário
razoável e ganhara a inteira confiança dos seus patrões pelos longos e
profícuos serviços prestados à empresa. Nem férias conseguia gozar, pois sempre
o arregimentavam para quebrar os galhos e fechar as contas. Sua boa situação
financeira sempre se imputava ao seu afinco ao emprego e, também, à sua crônica
sovinice. O dinheiro entrava em sua conta em cano de quatro polegadas e saía
gota a gota como em alambique.
O
que ninguém sabia é que havia mais razões para a situação financeira folgada do
nosso Loyola. Manipulando as contas e as verbas da firma, ele , funcionário de
plena confiança dos patrões, encontrou maneiras de fazer esvair-se dinheiro por canos paralelos, para pagamentos
de empresas de fachada e que terminavam
engordando sua própria poupança bancária. Tornara-se, assim, meio sócio
fantasma do negócio, sem que ninguém soubesse da empreitada. Emengardo ia de
vento em popa com seu barquinho. Mantinha suas virtudes bem à mostra e também
seus vícios menores os expunha com algum velamento. Tornara-se uma figura
querida na cidade e, antes de tudo, humana: dosara de forma harmônica santidade
e transgressão.
O diabo é que , com o passar dos anos, começou
a pesar, na cabeça judaico-cristã de Loyola, o seu maior e velado vício : o
surrupiamento clandestino das verbas da fábrica de sapatos. E aquele peso se
foi tornando insuportável, até mesmo porque ele não podia dividir com ninguém:
nem amigos, nem familiares, nem mesmo com
seu conselheiro religioso( temia a cobrança retroativa do dízimo). Um
dia, por fim, ele tomou a decisão drástica: Já basta! Vou viver do meu salário!
Nunca
ninguém compreendeu bem a derrocada de Emengardo a partir daquele dia. As
coisas começaram a minguar, caiu o padrão de vida, os filhos acostumados com
uma vida mais folgada tiveram dificuldade de se adaptar aos novos tempos de
cabritos magros. A esposa torceu o nariz e terminou resolvendo se separar do
marido, antes que todo o patrimônio adquirido por tantos anos, fosse todo pelo
ralo. Com o rabo entre as pernas, como cachorro em noite de São João, Loyola
começou a ficar recluso, a se afastar dos amigos e até da igreja. Sua tristeza
invadiu inclusive o seu ambiente de trabalho e os patrões começaram a olhar
para ele com ar meio atravessado. Resolveram, por fim, demiti-lo, temendo que
sua derrocada financeira o levasse a solapar o patrimônio da fábrica, para
cobrir o buraco nas próprias finanças.
Um
dia, por fim, a faxineira encontrou um
bilhetinho no criado mudo, junto ao copo de 1080 que pendia de uma mão inerte:
“Eu
, como qualquer simples mortal, era edifício construído com caibros e ripas de
poucas virtudes e linhas, colunas e
pilastras de muitos defeitos. Um dia resolvi, inadvertidamente, derrubar a viga mestra de imperfeições que
sustentava toda estrutura do prédio . Ruí!”
Crato, 22/08/14
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