J. Flávio Vieira
Uglino
Petico era feirante do ramo de miudezas. Vivia naquela vida nômade de mascate:
domingo em Matozinho, terça em Bertioga, quinta em Serrinha dos Nicodemos,
sexta em Ananás Florido , sábado em Jurumenha Mirim. Chegava, em geral, numa
D-20 velha, apelidada de “Jega Zonza” . Aportava, sempre, na noite anterior , na cidade agendada, para a organização do evento. Escolhia o
estratégico ponto, que mantinha geográfica e religiosamente há mais de vinte
anos, estendia a lona puída no chão e, madrugadinha, arrumava , em cima, a troçada toda : armadores de rede; correntes ; martelos; cordas; ferrolhos; dobradiças; serrotes; cabos de
enxada, de foice, de machado; traves de porta e janelas; imagens de santos;
meizinhas como arnica, boldo, hortelã,
bicarbonato, jurubeba; temperos que inundavam o mundo com seu cheiro : colorau,
pimenta do reino, cominho, alho, louro...
Cedinho já começava a vender a toda matutada e
varava o dia neste ofício. Tardezinha, recolhia tudo, arrumava na velha caminhonete
e partia para uma outra Vila a fim de começar tudo novamente. Vidinha cansada,
atribulada, mas divertida. Depois de
tantos anos, já conhecia todos os
companheiros de ofício e terminara por criar uma fiel freguesia. A noite que
antecedia à feira , onde todos os comerciantes ambulantes se reuniam para
arrumar os picuaios a serem vendidos no dia seguinte, passada canseira do
arruma-arruma, se transformava sempre numa festa. A zinebra corria solta,
sempre havia alguém com um pé-de-bode e, como por encanto, apareciam um violão, um triângulo , um
pandeiro. Altas noites, a cumplicidade da escuridão fazia os casados se arrumarem e os solteiros arranjarem um cobertorzinho de
orelha para varar o frio da noite. Com tantos anos de estrada, os casais se iam
formando naturalmente. Uglino tinha mulher em Matozinho, mas usava, no meio do
mundo, como refil, o corpo morno de Dorinha Manzape, uma vendedora de filhóis,
charutos e quebra-queixos. O colete já durava mais de dez anos e , contava-se a
boca miúda, pelo menos os cinco últimos
filhos de Dorinha contaram, certamente, com a participação especial de Petico,
seja como ator principal, seja como coadjuvante.
Estes
rebentos de Dorinha vinham se juntar com
mais doze que Uglino produzira com D. Estelita , sua fiel companheira, recebida
em pé de padre, há mais de trinta anos. Petico , comentava-se, era uma espécie de
jumento de lote e esta história vazara de fontes mais que confiáveis : das
amplificadoras quengais da Rua do Caneco
Amassado. Tinha o homem fama de touro
reprodutor e, também, comentava-se uma
outra similaridade que o aproximava do jerico: portentoso nos países baixos, era
gigante pela própria natureza. Mais de
uma neófita da mais tradicional das profissões já havia refugado ante a visão daquela arma aterradora que parecia o pau da
bandeira nas quermesses de Matozinho. Enfrentar
aquela surucucu, não era empreita para amador, mas obra para profissional com
curso no Butantã.
À
medida que os filhos foram surgindo, um a um, Uglino notou que , com a entrada
de Dorinha em campo, começou uma certa disputa entre as duas mulheres, cada
qual querendo ser mais fértil que a outra. Petico tentou até fazer com que as
duas utilizassem algum método anticoncepcional, mas instalada a corrida da fertilidade,
notou que seria impossível entregar esta tarefa à Dorinha e Estelita. Buscou,
então, o Posto de Saúde e um Programa do governo chamado de BEMFAM. Lá, a D. Veneranda,a mais antiga
enfermeira da vila, tentou orientar o
paciente. Ela se mostrava visivelmente
constrangida. Era uma das últimas virgens sacramentadas dali e acreditava que
se nunca tinha traçado e cortado o baralho não devia lhe caber a função de dar
as cartas. Mas que jeito ? Olhos fitos no chão, cara de acerola, indicou, cheia
de dedos, o uso da camisinha. Era método prático,
tranquilo e, o melhor, ficaria completamente sob controle dele. Informou, então, de forma muito genérica sobre o uso da
estrovenga.
---
Você já viu , no mercado, o magarefe enchendo linguiça ? Pois é daquele jeito,
viu ? Só não precisa picotar a carne, né
?
Petico fez-se meio renitente, por muitos
motivos. Aquele papelzinho deixado em cima do caramelo, tinha tudo para tirar o
gosto do bom-bom. Depois, pensou consigo: já madurão, vestir aquele negócio,
bimba acima, parecia perigoso. Aquilo
era coisa para adolescente , arisco, bastava triscar que a juriti levantava voo. Na
idade dele, botar aquela vestimenta, poderia enganar um Bráulio já meio sonolento e
o bicho, meio bambo, poderia interpretar
aquela indumentária como touca e
botar-se pra dormir imediatamente. Mas o
certo é que Veneranda tinha poder de
convencimento e conseguiu, mesmo com todos arrodeios possíveis, derrubar os seus temores. Iria correr tudo às mil
maravilhas, logo ele se adaptaria e conseguiria, por fim, pôr os dois times em
disputa , fora de jogo. Basta de tanto
crescei e multiplicai !
Na
semana seguinte, depois da via sacra de feiras, Uglino volta ao Posto preocupado. Procurou D.
Veneranda que, ocupada, estava aplicando algumas vacinas numa récua de meninos.
Com aquela voz tonitruante de camelô de feira , ele gritou, ainda da porta ,
sem se incomodar com a plateia :
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Enfermeira ! A tal da camisinha não deu certo , não !
D.
Veneranda, com cara de urucum, se fez de
mal entendida.
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Deu , não... ? E o que aconteceu , meu senhor ? Rasgou ? Estas costureiras de
hoje...
Uglino,
quase berrando, relatou um sério defeito
de alfaiataria :
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Não ! Ficou foi pegando marreca !
Crato, 28/ 11/ 14
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