J. Flávio Vieira
Solidônio
Canabrava tinha uma pequena loja de ferramentas em Matozinho. Negociava
implementos metálicos, como dobradiças, armadores, ferrolhos, correntes pregos, parafusos, foices, martelos. Talvez
tenha sido a proximidade e a dureza
desse material, que ele tanto manipulava no dia a dia, que terminou por
impregnar seu temperamento de uma a uma
certa acidez e petrificação. Tornara-se,
aparentemente, do reino mineral, antes que o tempo o levasse a esse que é o
destino final de todos os viventes. Era ríspido, direto, sistemático: com ele
não tinha perreps. Intolerante, não aceitava perguntas bestas, arrodeios desnecessários,
eufemismos, cerca-lourenços. Sua fama espalhara-se por todos arredores da vila. Os que o conheciam ,
tiravam de letra a aparente estupidez de Solidônio e até cutucavam a onça com
vara nanica, esperando a resposta pronta e carrascante como mourão de cerca. Os
de fora, no entanto, tantas e tantas vezes se incomodavam com a rudeza do
comerciante. Como se explicar que quem
quer pegar marreca viver gritando : xô ! Geralmente, depois de perguntas
redundantes, como:
--- Esse armador, seu
Solidônio, é pra armar rede ?
Vinha a resposta brusca e incisiva :
--- Não, Senhora ! Imagina ! Esse
armadorzinho é pra enfiar em cu de sabiá
e pegar elas como se fosse anzol!
E, imediatamente, tangia o perguntador peba, da sua loja, com o mote de
sempre :
--- Arreda ! Arreda, Dona Empaia
!
Contavam-se as histórias de Solidônio
por toda redondeza, umas verídicas e a grande parte delas nem tanto :
foram aparecendo folcloricamente, no fluxo ficcional da memória coletiva de
Matozinho. Uma rezava que ele estava arrumando alguns rolos
de arame farpado na loja, quando feriu a mão acidentamente, no ponta aguda do
arame. Continuou a arrumação como se nada tivesse acontecido. Logo depois,
novamente, repetiu-se a mesma tragédia: as pontas farpadas foram de encontro
aos dedos de Soledônio. Ele não teve conversa : olhou firmemente para o rolo e
disparou :
--- Ah ! Já sei ! Tu tá querendo é carne, né ? Pois toma ! --- Enfiou a
mão umas quinze vezes no rolo , quase perdendo todos os dedos.
De outra feita, conta-se, sentado, comendo mel de engenho, por duas
vezes, o mel caiu e lambuzou sua longa barba. O velho não contou conversa.
Olhou pra barba fixamente e logo sapecou o pires na cara , ameaçando a moita de
cabelos:
--- Ah ! Tu num é diabética , não, né?
Tu quer é mel, é ? Pois toma !
Foi por essas e outras que dali , também, saiu o apelido do nosso
personagem, embebido na grossura que lhe era a maior característica :
--- Pentelho de Capivara !
Claro que Solidônio não suportava o epíteto, nem sequer quaisquer
palavras que por acaso lembrassem esse nome. Por isso mesmo a alcunha pegou como catarro em parede.
Semana passada aconteceu o inesperado. Canabrava tinha um pequeno engenho
de cana de açúcar movido ainda a máquina a vapor. Uma das grandes moendas quebrou e tiveram que suspender a moagem.
Onde diabos encontrar uma estrovenga daquelas ? O maquinário tinha sido
importado , muitos anos atrás, da Inglaterra, pelo avô de Solidônio. Os
engenhos estavam quase todos de fogo morto. Em tempos de mariola,
Coca-Cola e chilitos, quem diabo queria
comprar batida, garapa, alfenim e
rapadura ? O eito de cana, no entanto,
estava cortado e parar tudo era um prejuízo danado.
Canabrava soube que, em
Serrinha dos Nicodemos, existia um velho que tinha um engenho similar ao seu e
que estava parado há muitos e muitos anos. As moendas, segundo lhe tinham
adiantado, estavam novas e a história é que O Coronel Balbino, o dono da
fazenda, falara , diversas vezes, na
venda daquele mundo de ferro, inclusive para ferro-velho. Soledônio , então,
chamou um velho choffeur de praça e resolveu ir negociar em Serrinha a compra
da moenda com Balbino. Durante a viagem, no entanto, o motorista o alertou. O coronel era um bicho
do mato, cabra bruto e indomável como um chucro. Para se ter uma ideia, alertou
: o apelido dele é : “Apito de Engenho” ! Será que o homem é bruto ?
Seguia a viagem
e o motorista continuava atemorizando o velho Solidônio:
--- O Senhor é
que sabe, seu Pentelho... ou... Seu
Solidônio . Ele vai dar um coice danado no senhor ! Pode esperar! Se eu fosse o
senhor eu não ia não !
Canabrava, no entanto, neste mister
tinha PHD e M.B.A. Não quis conversa, nem mostrou-se temeroso. Mandou picar
viagem. Vamos simbora !
Tardizinha
chegaram , por fim, nas terras de Balbino. Pararam defronte a casa alta, onde ,
após infindáveis degraus lá estava o coronel refestelado numa preguiçosa,
assistindo aos últimos estertores do dia. Solidônio, desceu do jipe, mandou o
motorista esperar um pouco , subiu calmamente a escada. E, sem delongas, fitou
o coronel e perguntou ?
--- O
senhor é o coronel Balbino , se má
pregunto ?
O
velho, com aquela cara dura de cobrador , sem o fitar nos olhos, latiu
de lá:
---
Sou sim, por que ? E se não fosse, você tinha alguma coisa a ver com isso ?
---
Né por nada não, Coronel ! Pegue sua moenda e meta no cu, joviu ?
Desceu
os degraus, entrou no jeep e voltou pra casa, após a mais rápida negociação já
registrada nos anais do CDL de Matozinho.
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