Ele estava na fila de
emprego e, apesar dos seus cabelos brancos, o reconheci de imediato. Preto e
baixinho, mas ainda esbelto e musculoso como o conheci na infância. Lembrei do
tempo em que ele recolhia o lixo da cidade, numa carroça puxada a burro,
encantava a meninada com estórias fantasiosas e tirava cocos de onde ninguém
tinha coragem.
Ao anoitecer,
deslumbrava a gente com a saga do pavão misterioso, as desventuras de Camões e
as travessuras picantes de Bocage. Outras vezes, era a aparição do monstro
Labatut, o tempo do rei e do império.
Para ter mais
veracidade, suas estórias eram herança de família, contadas pelo tetravô,
escravo alforriado, que conheceu D. João VI e participou de beija-mãos no Paço
Imperial. O monarca seria um tipo afrescalhado, imundo e medroso de trovoadas.
E a rainha, Carlota Joaquina, feia e maluca, lhe enchia de chifres, embora
também não tomasse banho.
Então lembrei-me de uma
eleição acirradíssima, onde a UDN, controlando o juiz e o delegado, impediu a
oposição de instalar auto-falante em qualquer prédio da cidade. A proibição, no
entanto, esqueceu os coqueiros e ele foi chamado para colocar o transmissor no
ponto mais alto da cidade. Com o aparelho e fios amarrados à cintura, escalou o
coqueiro e instalou o equipamento. Assim, sem infringir a lei e deixando os
adversários estupefatos, a “Voz do Cariri” entrou no ar e conduziu o PSD para a
vitória.
Depois, já na
meia-idade, ele se aproximou da Igreja. Sonhava ser da “Irmandade do
Santíssimo” e participou de procissões. Num “Corpus Christi”, vestiu um terno
branco usado e folgado, porem com boa figura sob a opa vermelha da irmandade. À
frente do palio, contrito, mas desajeitado, destoava dos irmãos ao conduzir o
castiçal e a vela inclinados, quando deveriam estar na vertical. Ao ver a cena,
dona Lídia, na calçada, não perdoou o gritou: “apruma a vara, Zé” ! A procissão
inteira interrompeu “...queremos Deus, que é o nosso rei...” e caiu na
gargalhada. Monsenhor Feitosa, zangado, por pouco não excomungou todo o mundo e
derrubou a custódia.
Por fim, as lembranças
pararam, bati em seu ombro e perguntei: e aí, ainda contando estórias ? - “Que
nada” respondeu sexagenário e triste, sem a vivacidade de outrora. – “Com a
terceirização, fui jogado na rua. Minha esperança agora é esse emprego de
coveiro, aqui no cemitério. Parece que vai dar certo. Afinal, eu entendo de
lixo e o que não falta em minha vida é alma penada”.
(*) Demóstenes Ribeiro (médico
cardiologista, filho de Missão Velha e atualmente radicado em Fortaleza, em
plena atividade)
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