Deus é Bom Pai
(Demóstenes Ribeiro – Médico Cardiologista)
Não sei
quando vou terminar esse rodízio de pizza. O último funeral me deixou
esfomeada, jazz-singer não tem que
ter cara de fome e o excesso de peso combina com a minha cor.
Pra uma
filha da rua, fui bem longe, pois nem sei onde nasci e é um milagre ter chegado
aqui. A velha com quem andava pelo mundo, foi o que mais parecido eu tive como
mãe e pai. Vagávamos de cidade em cidade, não tínhamos o que comer, dormíamos
ao relento e ela sempre a repetir que Deus era bom pai.
Depois, ela me
deixou com uma senhora bondosa e não tive mais notícias, desapareceu pra
sempre, certamente morreu. Essa dona parecia gostar de mim. Teve muitos filhos,
mas vivia quase sozinha, eles estudavam longe. Acho que eu aliviava a sua
saudade. Passei a chamá-la de mãe, ela me deu nome e carinho, farda e colégio,
era bem diferente do marido. Pra ele e a família, sempre fui negra e saco de
pancada.
Quase habituada
a um resto de vida, eu sofria muito em silêncio, mas não transparecia. Tinha
planos, sonhava em ser artista, achava que tinha algum talento, cedo ou tarde, o
mundo e a fama sorririam para mim. E quando o Michael Jackson começou, eu logo
aprendi o moonwalk.
Um dia,
cansei de ser escrava e me mandei. De carona em carona, motorista a motorista,
cidade em cidade, cheguei a Fortaleza. Perdida no centro, entrei numa igreja
evangélica. Um velho se aproximou de mim e começamos a conversar. Ele se
comoveu com a minha história e fui morar no seu barraco. Virei faxineira,
doméstica, entrei pra igreja e me convidaram para o coro quando me viram
cantar.
Certa vez,
cantei no velório de um irmão e a viúva disse que iria me ajudar. Tempos depois,
não lembro agora, morreu o pai do pastor. No final da cerimônia, sem que
ninguém esperasse, ataquei de “Meu
Querido, meu Velho, meu Amigo.” Cantei num ritmo mais lento, alternei
graves e agudos e fiz todo o mundo chorar.
Um agente funerário assistiu e me
convidou pra trabalhar na sua empresa. Ele assinou minha carteira e virei a
atração dos funerais. Nunca mais me faltou trabalho.
Já comecei a estudar inglês e estou me sofisticando. No
futuro só cantarei “spirituals and blues.”
Ontem mesmo, uma adolescente, filha única,
voltando pra casa mais cedo, ouviu gemidos na penumbra e flagrou a mãe com a
vizinha sapatão, inteiramente peladas, fodendo uma a outra, com um caralho de
plástico, na cobertura da Beira-Mar. A mocinha não suportou o pesadelo, saltou
do vigésimo andar e se estatelou no asfalto. Foi um belo salto e o céu recebeu a
sua alma. O pai está arrasado. Hoje, vou cantar no velório. Ensaiei “Tears in Heaven” e será uma
consagração. Ninguém vai ficar sem chorar.
O garçom não está gostando, mas tão cedo eu
não saio. Diva não tem que ser esbelta.
Espero morrer antes de ficar velha e se exagerar na comida o sono vem
mais fácil. Outro dia, depois de um rodízio desses, dormi profundamente no meio
das minhas bonecas e sonhei legal. Fui até o Mississipi. Fazia um luar bonito e
participei de uma jazz-session. Quando
cantei Summertime, Ella Fitzgerald,
sem que ninguém percebesse, falou no meu ouvido que eu era a sua continuação.
Deus realmente é bom pai.
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