Na cadeira de balanço,
iniciando a sesta e de olhos semicerrados, um riso silencioso invadiu
o rosto do meu avô.
- “Rindo do que,
vovô?
- Das mulheres, sempre
as mulheres.
- Mas não há mulher
nenhuma aqui.
- Como nenhuma, elas
estão sempre presentes!
- Mas eu continuo sem
enxergá-las, o senhor enlouqueceu?
- O espírito feminino
é onipresente.
- Onipresente, só
Deus.
- Ora, Deus e as
mulheres, não percebe?
- O senhor não está
legal, tomou seus remédios direito?
- Estou ótimo e
lembrei de uma delas. Foi engraçado e assustador.
- Uma delas... O
senhor e sua mania de grandeza.
- Mais respeito com o
velho. Ainda vai aprender muito se tiver a humildade em me escutar.
- Qual é a história
de hoje?
- Muitos lugares,
muitas mulheres, o mistério feminino a desvendar. Naveguei
muitos mares...
Fossem calmos ou revoltos, desbravei!
- Mentiroso!
- Mais respeito com o
seu avô, eu nunca faltei com o meu dever!
- Fala então,
garanhão!
- Atravessei o mundo
inteiro, mas faltava completar uma missão.
- Faltava o quê,
vovô?
- O Oriente, o extremo
Oriente, a terra do sol nascente... Quando cheguei a São
Paulo, não saía da
minha cabeça o inacessível Japão.
- E daí?
- Daí, a espera
paciente, não forcei a natureza das coisas. No entanto, nem o mais
sincero e esperançoso amor escapa ao sobrenatural.
- Como assim?
- Era uma sansei
delicada. Nariz afilado, traços ligeiramente ocidentais. A alma-
gêmea. Quem sabe em vidas
passadas eu não fora um samurai. De origem humilde, alguma
semelhança havia entre o drama nordestino e a saga dos seus avós.
E, sem sair de São Paulo, fui lhe mostrando o sertão. No Cantinho
do Nordeste, ela riu com as emboladas e os versos de cordel. Dançou
xaxado e forró. Queria saber de histórias, Padre Cícero,
Lampião... Apaixonados, meu filho, até haver o pior.
- O que aconteceu,
vovô?
- Num feriado, tivemos
o dia inteiro e, após uma manhã no Ibirapuera, fomos ao Restaurante
Oxumaré. Comida baiana, ela nunca havia provado. Cansada de sushis
e sashimis, foi ao self-service e ficou deslumbrada.
Iniciou com uma batida de pitanga, comeu um acarajé, outra batida de
cajá. Moqueca de peixe, bobó de camarão, adorou sarapatel, repetiu
o vatapá. Carne-seca com purê de aipim. Avançou no caruru.
Serviu-se de tudo um pouco. Findou com baba-de-moça e
cocada de mamão. Já era tardinha, quando saímos pra casa, e um
orixá esfomeado, ela parecia incorporar.
- Qual a tragédia,
afinal?
- À noite, iniciando o
amor, conhaque, calabresa e amendoim. Eu fiquei desconfiado, pois ela
queria sempre mais e a seguir veio o desastre.
- Conta logo, vovô!
- De repente, a
japonesinha saltou na cama, deitou de bruços e gritou feito uma
louca: agora, cabra da peste, vais conhecer o Japão! Seguiu-se uma
explosão fétida e furiosa, um pum atômico, mais de mil megatons,
Hiroshima e Nagasaki. Quase pedindo socorro, abri portas e janelas,
sacudi os lençóis e esvaziei o bom-ar até que aquele Exu
presepeiro fosse embora.
- Uma hecatombe, vovô!
- Cabeça baixa e olhos
úmidos, ela repetia desculpe. Sayonara, sayonara, com a
timidez ancestral. Foi um adeus definitivo. Maldita comida baiana!
Nem conheci o Oriente e casei com a sua avó!”
Tudo verdade. Vovô
nunca mentiu pra mim.
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