Ninguém deveria errar duas vezes, eu jamais me perdoarei por
isso, mas o mundo não é como a gente quer. No entanto, foram
épocas encantadoras, inesquecíveis e de magia sem igual. Se você
viveu algo parecido certamente me compreenderá.
A primeira vez, em São Paulo, saindo da adolescência, eu fazia
um curso de História e ele, Direito Internacional. Quantas vezes
fugindo do frio e tomando uísque barato, ouvimos jazz na “Opus
2004,” assistimos filme-cabeça no “Belas Artes” ou
descemos a Rebouças num fusca azul, a caminho do Embu, para a
privacidade de um motel.
Lá fora o mundo era sombrio. A ditadura militar amedrontava,
mataram o Herzog e apareceu aquela militante carioca muito mais
bonita do que eu. Quando ela se exilou em Portugal, Rodolfo foi
atrás. Tanta légua, tanto mar, era abril, a Revolução dos Cravos
e ele ficou por lá. Quase morri. Voltei pra Fortaleza e decidi não
me envolver com outra pessoa nunca mais.
O tempo passava, eu vivia para o colégio e para os meus pais,
para os sobrinhos e para o trabalho na pastoral. Feliz dessa maneira,
se é possível ser assim. Chegou o aniversário da diretora e
decidiram comemorar no “Oásis.” Eu não queria ir, pra
mim aquele era um lugar de desespero, de homens tristes e de mulheres
complicadas. Mas, os “Brasas” tocaram uma balada, os
nossos olhares se cruzaram, o anjo do amor desceu sobre mim e
Fortaleza ficou a nossos pés.
No Dragão do Mar ou na Praia do Futuro, no Iguatemi ou no Zé
de Alencar, sob a lua de Iracema ou no sorvete da Beira Mar, foram
beijos ardentes e abraços carinhosos, constrangendo a quem nos
assistia, e toda a loucura de que a paixão é capaz.
Na minha família ninguém gostou: embora ele morasse sozinho,
ainda era casado. Pouco me importava, eu era de novo a adolescente
enfeitiçada e deslumbrada vivendo outra vez a primavera dourada. Às
vezes, ele era estranho, aparentava distância e temia que nos
observassem. Eu pensava que era discrição, receio, ou timidez...
Aproximava-se o final do ano, haveria a reunião familiar, nós
estaríamos juntos e eu o protegeria como uma fera – que ninguém
se atrevesse a maltratá-lo.
Veio o Natal, o Ano Novo, ele não apareceu e eu fiquei
sozinha. Preferiu a mulher e as filhas. Então, caiu a ficha e me
desesperei. Entrei na igreja aos prantos, arrastada pelo vendaval e
desabafei com o padre Renato: minha filha, ele é muito diferente de
você. Deus sabe o que faz, quem somos nós pra compreender a vontade
do Senhor?
Com o tempo, a paixão desvaneceu e nunca mais o vi. Jamais
percebi que fosse mais um solitário e mulherengo, que só pensava em
si e que não gostava de ninguém. Parece que eu escapei de uma boa.
Voltei à catequese das crianças, às aulas no colégio e redobrei o
cuidado com os meus pais. Reencontrei-me comigo mesma. Outro dia me
surpreendi sorrindo e o tempo aliviou a minha dor.
Hoje, sem querer, passei em frente ao “Oásis.” Fazia um
sol poente e a boate não funciona mais. Está sendo demolida, já
quase toda no chão. Eu fechei os olhos, contive o choro e quando o
sinal abriu, parti sem rumo, com um aperto no coração.
Acabou a festa, mas a vida continua. Aprendi a costurar,
faço artesanato, ontem mesmo paguei o professor de dança e vou
passar a noite inteira no Círculo Militar.
Dr. Demóstenes Ribeiro (Cardiologista/Fortaleza-CE)
Nenhum comentário:
Postar um comentário