NOS
TEMPOS DA “BRILHANTINA” - José Nílton Mariano Saraiva
Localizada
ao oeste do estado do Rio Grande do Norte, quase que na fronteira com
o Ceará, Pau dos Ferros era (à época) uma dessas agradabilíssimas
minúsculas cidades interioranas (mudou bastante e hoje é uma
espécie de “cidade-pólo”, maior que o Crato em todos os
aspectos), em razão, principalmente, da índole receptiva do seu
povo e de um detalhe não tão comum em cidades interioranas: a
“beleza brejeira” e ao mesmo tempo esfuziante das suas mulheres,
aliada ao extremo bom gosto e requinte com que se vestiam. Até
parece que os famosos estilistas de moda, antes de lançarem suas
revolucionárias coleções em Paris, Roma ou Milão, faziam de Pau
dos Ferros uma espécie de “passarela-laboratório-experimental”
às suas criações (como luxavam aquelas jovens e belas mulheres
pau-ferrenses).
Vivenciamos
tudo isso em meados da década de 70, quando para lá nos deslocamos
a fim de cumprir adição de 90 dias no Banco do Nordeste do Brasil
S/A (BNB), então a única agência bancária da cidade; e, embora
realmente o trabalho fosse intenso (a ponto de se trabalhar de 10 a
12 horas por dia), a “diária” que se recebia compensava
plenamente, além do que havia uma espécie de “cumplicidade”
entre os que compunham a equipe beenebeana e a população da cidade.
O
dia-a-dia.
Ao
final da diária jornada de trabalho, a parada obrigatória era a
“Sorveteria do Sales” (próspero comerciante local), onde
sorvíamos uma “geladérrima”, ao tempo em que as paqueras se
sucediam, furtivas ou abertamente, num clima leve e sadio. Os
fins-de-semana, então, eram literalmente uma festa: num deles, por
exemplo, tínhamos a escolha da “miss olhos” (obviamente uma
amistosa disputa entre aquelas moçoilas adolescentes maravilhosas,
para se avaliar quem tinha os “olhos” mais bonitos); na outra
semana, a escolha do casal que melhor dançava; na outra, a escolha
daquela que melhor desfilava, e por aí vai. Era uma festa
permanente. E tudo dentro da mais pura inocência e simplicidade. O
certo é que a “coisa” era tão legal e gostosa que, não mais
que de repente, o tempo voou, os 90 dias exauriram-se e tivemos que
voltar para Fortaleza (houve uma tentativa de prorrogação da
adição, infrutífera).
Antes
da volta, entretanto, foi firmado um compromisso, uma profissão de
fé, um autêntico pacto de boêmios: sempre que houvesse uma festa
que compensasse, seríamos acionados, tempestivamente. E assim, todos
nós (mesmo os casados), que por lá passamos na condição de
“adidos” (uns seis colegas, não necessariamente no mesmo
período), findamos por voltar várias vezes.
Os
ônibus que faziam o percurso Fortaleza-Pau dos Ferros eram os
famosos “pinga-pinga” que, além de terrivelmente
desconfortáveis, eram desprovidos de banheiro. Pois foi numa dessas
viagens que o “inusitado” pintou no pedaço.
Já
saímos da rodoviária de Fortaleza um tanto quanto “melado”
(muita “birita” para – vejam só que desculpa mais esfarrapada
- poder ter coragem de enfrentar a buraqueira, já que parte da
estrada era de piçarra). Na chegada a Pau dos Ferros, seis da manhã,
os notívagos “recepcionistas” (colegas do Banco) já estavam a
nos esperar, à porta do ônibus, com um churrasquinho no ponto e
aquela cervejota “fumacenta de gelada” (é que a “agência do
ônibus” ficava estrategicamente localizada frente a um bar, que
aos finais de semana funcionava 24 horas por dia, ao som maravilhoso
de um Paulo Sérgio, Jerry Adriane, Carlos Gonzaga, Reginaldo Rossi,
Valdik Soriano e por aí vai).
Os
“trabalhos”, então, se iniciavam ali mesmo, sem nem escovar os
dentes. De lá e durante todo o dia de sábado, os encontros,
reencontros e novas amizades, na Sorveteria do Sales, na Churrascaria
do Anísio e/ou no meio da rua, com aquelas mulheres monumentais.
À
noite, após uma passada na “república” a fim de tomar um banho
caprichado, vestir a “CAMISA VOLTA AO MUNDO” e a “CALÇA DE
TERGAL”, passar uma “BRILHANTINA” no cabelo e colocar o perfume
“LANCASTER”, o objeto de desejo: a esperada festa no único clube
da cidade, que se prolongava até o sol raiar. Dali, depois do famoso
“caldo de misericórdia” servido num posto de gasolina, volta à
república pra mudar de roupa e todo mundo se mandava pra “barragem”
(na verdade, o açude que abastecia a cidade e onde existia uma
palhoça que servia “o melhor tucunaré de água doce do mundo”);
e tome “mé”. Aí, já na base do famoso “cuba-libre” –
mistura tanto saborosa como explosiva de Ron Montila e Coca-Cola.
Naquela
tarde de domingo, Rivelino, famoso jogador que houvera se destacado
no Corinthians, faria sua estreia no time do Fluminense (no
Maracanã), jogando contra o… Corinthians. E, mesmo diante de uma
televisão preto-e-branco com uma imagem pra lá de sofrível, na
sala da casa do prefeito da cidade (tricolor roxo) formamos uma
grande torcida do Fluminense (pra agradar o homem, é claro). E tome
“Ron Montila”, acompanhado de uma miscelânea de tira-gostos:
panelada, buchada, tucunaré, torresmo, churrasco, o escambau (era
comida que dava no meio da canela). O certo é que o tempo, de novo,
voou, e de repente chegou a “hora indesejada” do retorno.
E
aí a velha história repetiu-se: já chegamos na “parada do
ônibus” mais pra lá do que pra cá, “puto de raiva” por ter
que voltar no melhor da festa e lá encontramos a colega do BNB
Julieta, que fora adida e também houvera ido passar o final de
semana. Após cumprimentá-la sentamos na poltrona (???) e…
apagamos.
Lá
pras tantas (entre duas e três horas da madrugada) após uma parada
abrupta do coletivo a fim de desembarcar algumas pessoas que moravam
na zona rural ao lado da estrada, “ressuscitamos” e, pior, com
uma necessidade imperiosa e descomunal, de “descarregar”, “arriar
a massa” (lembremo-nos que o ônibus não dispunha do famoso
toilette). Falamos com o motorista e o trocador (existia um, sim,
encarregado de recolher o dinheiro das passagens) e eles sugeriram
que descêssemos o barranco e fizéssemos o “serviço”, enquanto
eles procuravam e entregavam a bagagem do pessoal rural.
E
só deu tempo mesmo de descer o barranco às pressas, arriar a
bermuda e... tome merda, muita merda, merda em profusão, em pleno
estado líquido e em “chicotadas” monumentais, brabíssimas (o
“inusitado” dera o ar de sua graça e o Ron Montila e apetitosos
tira-gostos finalmente cobravam seu preço).
Até
hoje não conseguimos lembrar é se nos deixamos absorver pelo
esplendor da belíssima lua no céu (em pleno meio da caatinga), se
dormimos de cócoras ou, simplesmente, se sentamos em cima do
produto; o certo é que, de repente, milagrosamente conseguimos
“captar” a zoada de um carro acelerando. Ao olhar, desesperado,
pra cima, rumo à estrada, divisamos o ônibus se afastando,
lentamente. Não houve tempo para raciocinar: num átimo, nos
despojamos da bermuda e da cueca, pegamos essa última e passamos de
forma apressada no traseiro, a jogamos fora, vestimos novamente a
bermuda e subimos a ribanceira feito um louco.
Contando
com a providencial solidariedade do pessoal que havia descido (umas
oito pessoas) que se puseram a “urrar” em plena duas horas da
manhã, o ônibus parou mais à frente. Resfolegando, com os bofes
saindo pela boca, suando em bicas por todos os poros, alcançamo-lo
e, evidentemente, reclamamos do motorista e cobrador; eles alegaram
que haviam “esquecido” e pediram desculpas.
Quando
sentamos na poltrona (???), uma réstia da luz da Lua que refletia
pela janela nos permitiu observar que a colega Julieta (ainda
dormindo) imediatamente virou o rosto para o outro lado. Deixamos pra
lá. Sentamos e... apagamos (de novo). Viagem que segue...
Oito
horas da manhã, rodoviária de Fortaleza, sol a pino. A muito custo
e após nos sacolejar bastante, a “dupla-sertaneja” (motorista e
cobrador), consegue finalmente nos “trazer de volta”. De mau
humor, com um terrível gosto de “cabo-de-guarda-chuva” na boca,
doido pra chegar em casa, não ligamos para a cara feia dos dois,
pegamos nossa sacola que estava na parte de cima e saímos.
E
foi aí, ao tentar nos despedir da colega Julieta, que vimos a
“merda” (literalmente) que tínhamos armado: é que ela (e demais
passageiros), não só se recusava a aceitar o nosso cumprimento,
como, também, olhava(m) fixamente para nossa mão estendida. Uma
“palhinha” de sobriedade pintou de repente e, já acometido de um
certo receio, um pressentimento estranho, um friozinho a nos
percorrer a espinha, acompanhamos o mortífero olhar da Julieta e, só
então, entendemos a dimensão da coisa: não só nossa mão, mas
partes do antebraço, coalhadas estavam de fezes, em transição do
estado líquido para o sólido. É que, na imensidão e solidão da
caatinga iluminada por aquela lua belíssima, ao passarmos a cueca
apressadamente no traseiro, ela não dera conta do recado e o
“produto” houvera vazado, em profusão, para a mão e
adjacências.
Nunca
antes havíamos passado por algo semelhante, por situação tão
constrangedora e vexatória. Na verdade, naquele momento a vontade
era de morrer, sumir, meter-se em algum buraco, desaparecer do mapa,
escafeder-se, se autotransportar para o Japão, China, um lugar
qualquer longe, bem longe dali, do outro lado do mundo. Uma tragédia.
Humilhação pra você nunca mais esquecer.
Pra
completar, quando tentamos dá um passo à frente, agora, sim,
sentimos a bermuda um tanto quanto apertada, muito presa ao corpo,
obstando estranhamente nossa locomoção; é que ela simplesmente
houvera “pregado” no traseiro, tal a quantidade de merda e a
extensão da área em que se propagara.
Resultado
??? A vergonha foi tão grande que ficamos “baratinados”,
perdemos a noção do tempo, da razão, do espaço e do ridículo, e
sequer conseguimos atinar que na Rodoviária tinha um banheiro onde
poderíamos fazer uma “meia-sola” (mini-banho) para nos livrarmos
“daquilo”.
E
assim, como nenhum taxista compreensivelmente nos aceitou como
passageiro, tivemos que fazer o razoável percurso do Bairro de
Fátima até o apartamento, no Centro da cidade, no “pé-dois”,
sol a pino, cantando amor febril e sob os olhares desdenhosos dos
transeuntes, que cortavam caminho, tratavam de passar por longe
daquele “lixo-humano” e sua estranha coreografia. É que nos
debatíamos com moscas, um exército de dezenas de moscas, a nos
perseguir insistentemente; a fedentina era tão grande, o odor à
nossa volta tão insuportável, até para a mais das insensíveis
narinas, que poderíamos e merecíamos ser cognominados como uma
“fossa ambulante”.
Quanto
à colega Julieta, passou um certo tempo amuada, cabreira, chateada,
sem querer papo nenhum, intrigada mesmo, pelo que era considerou
falta de respeito e consideração. Hoje, casada, mãe de filhos,
reside em Mossoró. Nas suas raras incursões à cidade de Fortaleza,
nas vezes em que a encontramos, nos saúda efusiva e festivamente,
embora um tanto quanto sui generis, diferente, inusual, esquisito
até: “Diga lá... seu cagão”. E haja risadas, muitas risadas.
Coisas
da vida...
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