TRIPULANTES DESTA MESMA NAVE
sexta-feira, 3 de agosto de 2007
Johann Sebastian Bach e José Aniceto
A queixa partiu do musicólogo George Lederman, quando terminávamos de ouvir A Paixão Segundo São Mateus, de Bach: nunca mais se comporá assim. A noite sem lua, o pátio extenso da casa de campo e o retorno ao silêncio após os últimos acordes da orquestra tornavam a sentença bíblica. Na verdade, nunca mais se compôs assim. A prova é que escolheram a música do mestre alemão para ser lançada no espaço, escapando a prováveis hecatombes que varram o homem e sua arte do planeta. Algum dia, seres de outros universos poderão se encantar com a mais sublime e elevada música. Talvez, os etês não compreendam como foi possível que do mesmo barro original tenha nascido a mão que desenhava partituras e a que apertou o botão das ogivas nucleares para o ato final.
"A Paixão" é uma obra complexa, dura quase quatro horas, exige dois coros, cada qual com sua própria orquestra, e inúmeros solistas vocais e instrumentais. As peças profanas do compositor são poucas, se comparadas à sua música sacra, composta sobretudo de 1723 até sua morte em 1750, quando trabalhava em Leipzig, como mestre de capela ou diretor musical de várias igrejas. O miraculoso para nós modernos é o volume da obra de Bach: trezentas cantatas, das quais nos chegaram duzentas; cinco paixões, três oratórios, um magnificat, seis concertos de Brandemburgo, diversos concertos para violino e cravo; fugas, prelúdios, fantasias, sonatas, tocatas, partitas, suítes e caprichos escritos numa época em que não existiam computadores editando partituras musicais. Será que o tempo diminuiu a sua medida ou possuía um outro sentido e utilidade que perdemos? Bach tinha uma grande família e se ocupava da educação dos filhos. Religioso, compunha para o futuro, sempre na perspectiva do eterno. Era imune à ansiedade do homem contemporâneo, que só pensa no reconhecimento imediato e no consumo do seu produto artístico.
O compositor que ficou esquecido cem anos, também fez sombra ao talento dos filhos. Só agora os pesquisadores chamam atenção para a qualidade da música produzida pelos filhos de Bach. A história do homem é assim mesmo, um terreno arqueológico em que camadas se sobrepõem às outras e só por milagre alguns tesouros perdidos vêm à luz. Há vários níveis de saber na construção do conhecimento humano. Penso numa pequena orquestra da minha cidade do Crato, uma humilde banda cabaçal de dois pífaros, uma zabumba, uma caixa e um par de pratos. Tinha o nome de "Os Irmãos Aniceto", e era formada por um pai e quatro filhos homens. Bastava olhá-los para reconhecer que o sangue de índios e negros corria nas suas veias. Criados nos vales e chapada do Araripe, acostumaram-se a caçar na floresta e banhar-se nas nascentes d'água. Plantavam arroz, feijão, mandioca e milho como todos os pequenos agricultores. No tempo livre, tocavam seus instrumentos e dançavam. Tinham um repertório de mais de cem peças, de que se diziam autores. Pode-se duvidar da informação. Outras bandas locais executavam músicas semelhantes. Mas isso não tem a menor importância. A arte é um bem comum e só o homem moderno inventou a assinatura como marca de proprietário.
Por alguma razão a família Aniceto sempre me lembrou a família Bach. Há em comum entre eles o mesmo modo religioso de viver, o sentido de sagrado, a arte incorporada ao comum das coisas. Toca-se o pífaro com a mesma fé e concentração com que se bebe um copo d'água. Com a música celebram-se os nascimentos, os casamentos, as colheitas, a morte. Não há rupturas na cadeia do viver, nenhum staccatto. O tempo flui com uma outra medida. Plantar um roçado de milho não é diferente de compor uma marcha de estrada.
Tive provas disso. Nos meus tempos de pesquisador de cultura popular, assisti a uma apresentação de palanque dos Irmãos Aniceto. Depois de marchas e baiões, cada membro faria um solo com o seu instrumento, tocando e dançando. Os quatro irmãos, Francisco, João, Antonio e Raimundo, saíram-se bem, sendo aplaudidos. O Velho José Aniceto, com quase noventa anos, foi deixado por último. Para ele, mestre e pai, sobraram os pratos, por serem leves e não exigirem esforço. Quando o filho mais velho fez uma vênia na sua frente, estava dado o sinal para que começasse a dança. Solene e vagaroso, o velho colocou os pratos no chão e deitou-se de bruços. Debatia-se, agitando braços e pernas, como se lutasse contra um monstro poderoso. O público, estranhando aquela dança, não teve a menor compaixão e vaiou o velho até que ele se levantou, dando o rito por encerrado. Eu sofria como se fosse contra mim todo o clamor. Dias depois ele me disse: já estou velho e a minha briga é com a morte. Eu me atiro na terra e ela me puxa para baixo, querendo me levar. Eu luto, luto para subir pro céu.
A música barroca de Bach eleva-se em espirais e sugere um movimento de ascensão. O mesmo que o velho José Aniceto tentava dar à sua vida e à sua modesta criação.
Ronaldo Correia de Brito é médico e escritor Caririfense. Escreveu Faca e Livro dos Homens. Assina coluna na revista Continente e no site Terra Magazine
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3 comentários:
Eu sempre admirei os escritores de ficção desde a minha juventude. Gente talentosa como Júlio Verne, Arthur C. Clark, e Gene Roddenbery que nos fazem ver gigantes, onde há apenas formigas. Essa é a missão da ficção.
E ainda bem que o autor se explicou bem sobre essa comparação musicalmente absurda, ressaltando somente o lado puramente humano ( não da alma musical divina ), da similaridade, afinal, ambos pertencem ao gênero Homo Sapiens, possuem 2 braços, duas pernas e uma só cabeça, e a similaridade pára por aí, até porque, de longe, ao olho míope, o Átomo e o Universo inteiro podem parecer a mesma coisa, de mesmo tamanho e proporções.
"O que será, que será?
Que vive nas idéias desses amantes?
Que cantam os poetas mais delirantes?
Que juram os profetas embriagados?
Que está na romaría dos mutilados?
Que está na fantasía dos infelizes?
Que está no día a día das meretrizes?
No plano dos bandidos, dos desvalidos?
Em todos os sentidos.
Será, que será.
O que não tem descência, nem nunca terá?
O que não tem censura, nem nunca terá?
O que não faz sentido?"
"Bach é Bach, como Deus é Deus"
Beethoven
"O problema é que as pessoas sabem que Bach é deus mas não sabem PORQUÊ Bach é deus. E para compreender isso, há que ter alma, entendimento e ouvidos de músico, não de poeta!"
George Gardner, viajante inglês, quando passou pelo Crato nos idos de 1839,viu uma Banda Cabaçal e descreveu no seu livro que ela tocava uma música horrível.Visão fria e vesga de um viajante em terras estranhas. Conheço o Dihelson e o respeito mas sei que ele, pela própria formação, tem uma visão muito erudita de Arte.Claro que não dá para comparar em partitura a música de Bach e dos Aniceto e nem se pretende isto. É preciso, no entanto, não esquecer que a música e coreografia dos Aniceto é bem mais que isto. Os Aniceto não tocam meramente uma melodia eles cantam o Hino dos Cariris e, com isso, nos colocam neste mundo tão vasto com a nossa diferença e a nossa individualidade. E a Arte, com todas releituras que se faça, sempre tem raízes profundamente populares. Shekespeare bebeu nas histórias que passavam de boca em boca, Villa-Lobos sorveu a música popularesca, o D. Quixote( o maior livro da literatura universal) é profundamente popular. Bach, com todo o seu gênio, não existiria se não tivesse se voltado para a arte popular em que estava imerso na época. Talvez por isto mesmo Ronaldo Brito( não só um dos mais badalados escritores brasileiros atuais, mas um profundo pesquisador) os tenha achado artisticamente tão próximos, embora aparentemente separados por muitas claves de sol e muitos colchetes.
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