TRIPULANTES DESTA MESMA NAVE

domingo, 4 de maio de 2008

DORALICE TEM UM GATO E UM CANCÃO

Antonia Doralice de Oliveira tem um gato. O gato salta solto pelas janelas, escala o telhado, roça o pelo na quina da porta. É gato caçador. Sorrateiro pelo muro, atacando lagartixa no de siriguela, pulando para o lado vizinho. Gato miador. Quando as fêmeas da vizinhança espalham os odores do cio, Dora dorme tranqüila de porta fechada, ar-condicionado isolando as intensas negociações das cercanias. Como todos se lembram, não se trata do pregão da Bolsa de Valores, pois no caso as ofertas, contra-ofertas, coberturas com ágios, são lentas e demoradas. Os fonemas se prolongam em língua de gato, não sem unhadas de disputas, fugas em desembaladas descidas de muro a baixo. Acontece que o gato da casa é um vitorioso, a cada ciclo reprodutivo, uma ninhada de filhos espalha os genes deles na barriga de várias gatas. O gato de Dora, apesar da incorreção política da frase, é o ideal masculino. Em tempo de gato, o gato dela se eternizará por gerações. Mas é bom dizer: o gato de Doralice é gato caçador.

Antonia Doralice tem um cancão. Como todos sabemos é ave passeriforme da família dos corvídeos. No Brasil ocorre no Nordeste e no Centro-Oeste. Há quem os chame de quenquém. Acontece que o cancão de Dora também vive solto. Asas aparadas para não voar, tem seu poleiro. Sim e tem outro detalhe. O cancão imita outros pássaros e animais. Tem gente que os treina como papagaio e são capazes de dizer frases inteiras. Ficou conhecido o cancão de Julião, na fazenda Riacho do Meio. O pássaro de Julião vivia solto no terreiro e rezava trechos da Ave Maria. Mas, ao contrário de Julião, Dora não treinou seu cancão, ele que, pelo esforço autodidata, aprendeu outros falares.

teve um tempo que os brasileiros mais estudados, falavam e liam em Francês. Embora a pátria falasse um português modificado pelos arranjos do relevo ao relento do ambiente equatorial e tropical, os nativos cultos falavam Francês. Mas isso é coisa do passado. Agora a turma quer é falar Inglês. Se tiver uma estampa na camiseta, se encontra alguma coisa que a gente do povo não sabe ler, pois língua da terra não é. Mas existe muito sabido usando palavras em Inglês. Os intelectuais, principalmente da academia, entremeiam tantas palavras inglesas na língua brasileira como se fosse purpurina em roupa de alguma “star”. Hoje a coisa é de tal ordem que nem os títulos dos filmes estrangeiros estão sendo traduzidos. Acontece que como se viu com o Cancão de Dora, falar a língua dos outros pode levar ao desastre.

O cancão, poliglota como ele , aprendeu a falar gatês. Ou seja, o neologismo para a língua de Gato. O pior é que o sotaque e a entonação eram a mesma do Gato de Dora. Quando o cancão terminara o processo de aprendizado consigo mesmo, ouvindo o gato, este tomou um susto tremendo e saiu correndo de sala a fora em direção ao fim do mundo. Nas próximas vezes o gato ficou procurando pelo seu duplo em algum lado e encontrava, no alto, o cancão sobre o poleiro. Desconfiado, deitou-se no ângulo de observação quando pegou o cancão em animada peroração.

Desfeita igual aquela nunca havia sofrido. Se bem que a empregada de Dora costumasse jogar uma sandália havaiana para espantá-lo, mas humilhação como a do cancão nem no juízo final sofreria. Analisando o terreno deu um pulo sobre a máquina de costurar. Enquanto o cancão retornava aos exercícios com o gatês. Gato é manhoso, mas sua alma de felino tem o dom da espera. O bote com sucesso é seu maior orgulho. E seu orgulho deriva da espera, da escolha do melhor momento. Músculos encurtados para disparar. O quadril com o rabo um pouco mais baixo. As patas dianteiras levemente dobradas. Os pelos eriçados. O gato está preparado.

Enquanto isso, o cancão parece um intelectual falando para seu grupo de discípulos. Falando, não em cancanês, mas em gatês. Era um charme completo. Trepado, longe da malta ignara, o cancão dizia tudo, até dos momentos libidinosos das meias noites de negociação das ofertas do cio. Cancão erudito é assim. Sabe tudo da língua estrangeira, dos seus toques sutis, dos seus modos rasgados, das vagas das imprecações. O cancão era ele e o mundo era todo dele. E nisso...

O prédio da reitoria ruiu sobre o rabo dele. Não ficou uma pena no lugar. Quando se viu, desciam rumo ao chão, desenhando sianinha, em dança de leveza ao sabor do vento e da atração da gravidade. Isso é questão de segundos. Logo as unhas afiadas do Gato de Dora desceram no espinhaço acima do rabo e mais rápido que as modernas máquinas de cortar cabelos, algumas fileiras de penas deram lugar a um caminho sobre a pele nua. O Cancão de Dora era angústia . A morte viera sobre a velocidade dos raios. Os dentes do gato pretendiam almoçar o cancão. As asas do poliglota debatiam-se em louco desespero. Tamanha foi a agitação que alguém deu conta do acontecimento e emendou um sapato de baixo a cima, pegando bem na cabeça do gato. Este deu um grito em linguagem de gato, em dois pulos mais rápidos que a caganeira, estava desembalado de quintal a fora, fugindo dos torpedos.

Não os cansarei com as meizinhas sobre os arranhões do desconfiado poliglota. Apenas direi.

Doralice tem um gato e um cancão. O gato mia. O cancão diz “can-can”. Jamais ninguém ouviu falar que, um dia qualquer, este pássaro se manifestasse em outra voz que não a sua.

3 comentários:

Dihelson Mendonça disse...

Muito bom, José do Vale. Interessante como pelo estilo, até pensei que fosse do nosso amigo Dr. José Flávio.

Parabéns!

Dihelson Mendonça

socorro moreira disse...

"Agora amor, Doralice , meu bem ...Como é que nós vamos fazer ?"

Dihelson Mendonça disse...

Pois é, Doralice, quem foi que te disse que amar é tolice ??

rs rs rs