A partir de um suposto canibalismo de índios numa tribo do Amazonas, levantou-se o contraponto idílico da catequese cristã. A imagem central é de que os europeus vieram às Américas para “salvar” os nativos de sua natural “degeneração” humana. As regras cristãs teriam salvo os gentios de si mesmo.
Acontece que embora o cristianismo tenha uma matriz civilizatória que atravessa o Ocidente desde a antiguidade, não é possível isolar o catequizado do catequizador. E é justamente no catequizador que reside o problema. Pois este homem europeu dos séculos XIV, XV e XVI tem uma face, tem uma história e tem um próprio modo de se apresentar nas crônicas perante os contemporâneos e para aqueles do futuro. E o traço central dos estudos da historiografia portuguesa é de que eram cronistas “utilitaristas” que usavam a narrativa para justificar a própria ação de guerra, domínio e extermínio em outros continentes.
Mas voltemos à origem desta face do século XV pela leitura dos três volumosos livros de Fernand Braudel sobre Civilização Material, Economia e Capitalismo Séculos XV-XVIII. A primeira é a face do impacto demográfico continental resultado do simples contato entre europeus e ameríndios. No tempo exato que os Europeus aportaram suas naus em nossas costas estimou-se, pela Universidade de Berkeley, que só no México existiriam 25 milhões de habitantes, que na América Latina Inteira estes números variaram entre 80 e 100 milhões. Agora a face negra: o México tinha 25 milhões em 1500, mas em 1548 a população tinha se reduzido a 6,3 milhões terminando o século XV perto de um milhão. Isso mesmo: houve uma redução de 25 vezes na população local em um século. Ou seja, uma dizimação muito superior ao próprio efeito das guerras numerosas, das crises de fome e das epidemias na Europa.
Diz o autor: “As doenças – isto é, os vírus, bactérias e parasitas importados da Europa ou da África – propagaram-se mais rapidamente do que os animais, as plantas e os homens que também chegaram do outro lado do Atlântico. As populações ameríndias, que só estavam adaptadas aos seus próprios agentes patogênicos, ficaram desarmadas perante estes novos perigos”. E acrescento: quem conhece bem a história da dispersão das doenças infecciosas e parasitárias, tais como a varíola, o sarampo ou a tuberculose, conhece bem como seus canais de transmissão dependem do modo de produção das populações, de como formam suas habitações, suas rotas de troca econômica e assim por diante. Ou seja, a famosa Villa de Cataquese, de confinamento dos indígenas era a estrutura apropriada para a reprodução destas doenças entre nós.
Estudos realizados sob os auspícios da Campanha Nacional Contra a Tuberculose no Sudeste, concluíram especialmente com Jaime dos Santos Neves o quanto os padres estiveram na matriz da disseminação da tuberculose. Acontece que na época a doença era tratada com alimentação e mudança climática. Os padres tuberculosos vinham para a sua ação missionária no Brasil, entre eles o nosso Anchieta e Manoel da Nóbrega. Um simples tuberculoso com tosse produtiva e baciloscopia positiva provocava uma epidemia numa missão de índios indenes.
A Europa não nos podia ensinar o paraíso e o equilíbrio. Ela era propriamente desequilibrada. Só a partir do século XVII a vida passa a ganhar da morte. A fome, ou seja, a incapacidade européia de produzir alimento para sua própria população era um absurdo do ponto de vista de qualquer noção civilizada dos dias de hoje. Diz Braudel: A França, país privilegiado como poucos, passou por sete fomes gerais no século XV, 13 no XVI, 11 no século XVII e 16 no século XVIII. Quando ele fala deste país privilegiado como poucos diz tudo, a fome grassou na Inglaterra, na Alemanha, na Itália e assim por diante. E como sabemos as epidemias são a irmãs gemelares da fome. E elas sob vários mantos, inclusive da peste, reviraram a Europa nestes séculos do Brasil colônia.
Como sabemos a Europa conquistou e ocupou literalmente as Américas. Aliás dos continentes de sua aventura transoceânica o único em que definitivamente ficaram foram as Américas e o Australiano. Esse espaço não ingênuo da história é o da conquista de espaços conquistados pelos europeus. E para dar referência, reproduzo literalmente Fernand Braudel:
“A regra geral, aliás, é as civilizações jogarem e ganharem. Ganham das “culturas”, ganham dos povos primitivos; ganham também do espaço vazio. No Brasil, o português aparece, e o índio primitivo retrai-se: cede o seu lugar. È quase o vazio o que as bandeiras paulistas enxameiam. Em menos de um século, os aventureiros de São Paulo, à procura de escravos, de pedras preciosas e de ouro, percorrem, sem o tomar, metade do continente sul-americano, do Rio de La Plata ao Amazonas e aos Andes. Não encontraram resistência antes de os jesuítas terem constituídos as suas reservas índias e os paulistas as terem pilhado desavergonhadamente”.
Enfim, diante de uma notícia que não se fundamenta em realidade absoluta segundo declarações da própria FUNAI no que se refere ao ato de canibalismo, podemos tanto revelar o perfil pavoroso dos habitantes originais deste continente, quanto aquele mesmo de quem o conquistou. Assim como não é possível limpar a cara dos pajés, também não o é dos padres. Ambos no que se refere aos séculos de então (Séculos da Conquista e da Colônia) são pessoas históricas reais com os valores de sua época, não interessa que sob a égide do Deus Cristão ou de um Deus Cariri. Apenas para juntar idéias: Domingos Jorge Velho era um dos bandeirantes paulistas que participou da destruição do quilombo dos palmares e também da perseguição aos índios Cariris durante o Levante Geral do Bárbaros ou Confederação dos Cariris.
Por isso é melhor que não voltemos a velho modo “utilitarista” de justificar o presente com as glórias do passado. Em certo sentido, especialmente neste, é melhor deixar os mortos em paz.
Acontece que embora o cristianismo tenha uma matriz civilizatória que atravessa o Ocidente desde a antiguidade, não é possível isolar o catequizado do catequizador. E é justamente no catequizador que reside o problema. Pois este homem europeu dos séculos XIV, XV e XVI tem uma face, tem uma história e tem um próprio modo de se apresentar nas crônicas perante os contemporâneos e para aqueles do futuro. E o traço central dos estudos da historiografia portuguesa é de que eram cronistas “utilitaristas” que usavam a narrativa para justificar a própria ação de guerra, domínio e extermínio em outros continentes.
Mas voltemos à origem desta face do século XV pela leitura dos três volumosos livros de Fernand Braudel sobre Civilização Material, Economia e Capitalismo Séculos XV-XVIII. A primeira é a face do impacto demográfico continental resultado do simples contato entre europeus e ameríndios. No tempo exato que os Europeus aportaram suas naus em nossas costas estimou-se, pela Universidade de Berkeley, que só no México existiriam 25 milhões de habitantes, que na América Latina Inteira estes números variaram entre 80 e 100 milhões. Agora a face negra: o México tinha 25 milhões em 1500, mas em 1548 a população tinha se reduzido a 6,3 milhões terminando o século XV perto de um milhão. Isso mesmo: houve uma redução de 25 vezes na população local em um século. Ou seja, uma dizimação muito superior ao próprio efeito das guerras numerosas, das crises de fome e das epidemias na Europa.
Diz o autor: “As doenças – isto é, os vírus, bactérias e parasitas importados da Europa ou da África – propagaram-se mais rapidamente do que os animais, as plantas e os homens que também chegaram do outro lado do Atlântico. As populações ameríndias, que só estavam adaptadas aos seus próprios agentes patogênicos, ficaram desarmadas perante estes novos perigos”. E acrescento: quem conhece bem a história da dispersão das doenças infecciosas e parasitárias, tais como a varíola, o sarampo ou a tuberculose, conhece bem como seus canais de transmissão dependem do modo de produção das populações, de como formam suas habitações, suas rotas de troca econômica e assim por diante. Ou seja, a famosa Villa de Cataquese, de confinamento dos indígenas era a estrutura apropriada para a reprodução destas doenças entre nós.
Estudos realizados sob os auspícios da Campanha Nacional Contra a Tuberculose no Sudeste, concluíram especialmente com Jaime dos Santos Neves o quanto os padres estiveram na matriz da disseminação da tuberculose. Acontece que na época a doença era tratada com alimentação e mudança climática. Os padres tuberculosos vinham para a sua ação missionária no Brasil, entre eles o nosso Anchieta e Manoel da Nóbrega. Um simples tuberculoso com tosse produtiva e baciloscopia positiva provocava uma epidemia numa missão de índios indenes.
A Europa não nos podia ensinar o paraíso e o equilíbrio. Ela era propriamente desequilibrada. Só a partir do século XVII a vida passa a ganhar da morte. A fome, ou seja, a incapacidade européia de produzir alimento para sua própria população era um absurdo do ponto de vista de qualquer noção civilizada dos dias de hoje. Diz Braudel: A França, país privilegiado como poucos, passou por sete fomes gerais no século XV, 13 no XVI, 11 no século XVII e 16 no século XVIII. Quando ele fala deste país privilegiado como poucos diz tudo, a fome grassou na Inglaterra, na Alemanha, na Itália e assim por diante. E como sabemos as epidemias são a irmãs gemelares da fome. E elas sob vários mantos, inclusive da peste, reviraram a Europa nestes séculos do Brasil colônia.
Como sabemos a Europa conquistou e ocupou literalmente as Américas. Aliás dos continentes de sua aventura transoceânica o único em que definitivamente ficaram foram as Américas e o Australiano. Esse espaço não ingênuo da história é o da conquista de espaços conquistados pelos europeus. E para dar referência, reproduzo literalmente Fernand Braudel:
“A regra geral, aliás, é as civilizações jogarem e ganharem. Ganham das “culturas”, ganham dos povos primitivos; ganham também do espaço vazio. No Brasil, o português aparece, e o índio primitivo retrai-se: cede o seu lugar. È quase o vazio o que as bandeiras paulistas enxameiam. Em menos de um século, os aventureiros de São Paulo, à procura de escravos, de pedras preciosas e de ouro, percorrem, sem o tomar, metade do continente sul-americano, do Rio de La Plata ao Amazonas e aos Andes. Não encontraram resistência antes de os jesuítas terem constituídos as suas reservas índias e os paulistas as terem pilhado desavergonhadamente”.
Enfim, diante de uma notícia que não se fundamenta em realidade absoluta segundo declarações da própria FUNAI no que se refere ao ato de canibalismo, podemos tanto revelar o perfil pavoroso dos habitantes originais deste continente, quanto aquele mesmo de quem o conquistou. Assim como não é possível limpar a cara dos pajés, também não o é dos padres. Ambos no que se refere aos séculos de então (Séculos da Conquista e da Colônia) são pessoas históricas reais com os valores de sua época, não interessa que sob a égide do Deus Cristão ou de um Deus Cariri. Apenas para juntar idéias: Domingos Jorge Velho era um dos bandeirantes paulistas que participou da destruição do quilombo dos palmares e também da perseguição aos índios Cariris durante o Levante Geral do Bárbaros ou Confederação dos Cariris.
Por isso é melhor que não voltemos a velho modo “utilitarista” de justificar o presente com as glórias do passado. Em certo sentido, especialmente neste, é melhor deixar os mortos em paz.
Nenhum comentário:
Postar um comentário