TRIPULANTES DESTA MESMA NAVE

segunda-feira, 2 de março de 2009

Eu lembro (que a mitologia dos gregos se foda)

“Seus otários, nos atropelamos vocês. Nós passamos por isso”.

para Daniel e Isac. Irmãos, assim como os meus.

Ainda que venha comprovar algo que alguns já me dizem “Você tá ficando velho, meu chapa”, vou ma arriscar e dizer: esse tempo anda chato pra caralho!

Estou nesse momento, entre onze e meio-dia, me preparando para o trabalho. Tenho uma barriga proeminente, barbas grisalhas e cabelos idem. Não ando mais com uma puta cabeleira por conta do calor, e do saco de ficar lavando todo santo dia essa porra – apesar de achar legal no Page ou no Plant aquelas jubas.

Meus vinis estão em algum lugar desconhecido até por mim, e não me importo ao ponto de querer morrer por isso. Não morreria pelos vinis em si, mas pelas capas; portanto, ainda os procuro algum dia. Meus gibis andam em bom estado, bem como meus livros antigos e coleções do Frank Miller e da Chiclete com Banana.

Mas não é isso que me faz parar o almoço e vir aqui. É o som. A música que, meio por acaso, coloquei no CD player: Camisa de Vênus.

Boas e más lembranças me vieram à mente. Momentos, frases; instantâneos cheios de fúria. Situações de glória e confusão. Todas envolvidas pela intensidade que a vida requer - apesar dos que insistem em dizer que a vida é essa sucessão de contas, de planos pro futuro onde cada vez mais a gente enlouquece de frente pra TV a cabo, cheios de recalques e de uma fé cega em pastores, jornalistas e nos ditames fodidos do mundo.

Uma época em que éramos senhores da rua, ainda que a rua fosse uma esquina e dali a gente não pudesse cruzar dois ou três quarteirões por medo dos gigantes tatuados do outro conjunto. Era um tempo meio selvagem. Levávamos a toque de pedra o ditado do Hemingway: “Seja intrépido em público”, pois em casa a coisa ruía ao primeiro sinal da tristeza dos velhos, do silêncio onipresente na mesa da janta.

Fora os dias que eu matava aula, por medo de uma surra jurada de forma categórica enquanto a professora dormia em meio as teorias imbecis da Educação Moral e Cívica.

Anos oitenta. Sonoro dizer isso assim: anos-oitenta. Eu de otário passei a quase nobre condição de sujeito torto. Não dava bandeira pros velhos, bem como para a parentada que pintava aqui em casa pra dizer o quanto éramos meio esquisitos – claro, tudo de uma forma polida e bem intencionada.

Eu escuto as músicas. Me comovo com franqueza de espírito. Tenho vontades de pular em meu quarto apertado, ainda que amanhã acorde me achando meio babaca. Um sujeito de 35 anos, cronologicamente ainda novo, mas sem muito saco de ser o que o resto do mundo deseja.

“Meu primo Zé”, “Bete morreu”, “Sílvia”. Ou mesmo “Lena”, que, em minha opinião abertamente apaixonada e comovida, é umas das melhores coisas que já ouvi – “Lena” já nos dava, naquele período, a noção de como as coisas estariam; esse silêncio, essa assepsia, esse branco que impera nas relações; um falso branco, um alvo fajuto; um tiro na maçã numa sala escura, feito um Guilherme Tell cheio de ressentimentos.

As músicas do Camisa eram proibitivas se assobiadas nos lugares. Os inimigos com os caninos à mostra nos olhavam; vizinhas, sogras, mães zelosas com o ranço de cebola nas bocetas. Senhoras bem intencionadas em nos meter num quartel e nos fazer sorrir com diplomas de contabilidade metidos em molduras austeras – eu os tenho, e de nada me ajudam quando a alma se dirige em direção ao horizonte tonto das lembranças.

Hoje em dias tais músicas iriam ferir os sentimentos dos novos. Seriam taxadas de infelizes. Sujas e distante demais dessa coisinha irritante das letras sofisticadas, praga iniciada com os Los Hermanos, cujos discos nunca mais escutei e que me deixaram com um débito imenso na minha lista de erros que poderiam ter sido evitados.

Eles falavam de estupro, descrença e famílias. Falavam disso numa boa. Enquanto rasgavam as guitarras toscas, com seus óculos escuros e pupilas certamente dilatadas.

Os de hoje iriam reclamar. Iriam achar tudo muito grosseiro e estúpido. Esses meninos que mantém as franjas escorridas e falam como se estivessem sussurrando. Os mesmos que se fodem por bem pouco; os mesmos que enchem as fileiras das igrejas pentecostais e nos sorriem condescendentes quando acendemos a porra de um cigarro na rua.

Quando os vejo malhar o corpo com o auxílio de seringas hipodérmicas, eu fico na minha. Quando os vejo se enfiar nos postes com seus carrões envenenados, penso em curtir um bom período numa ilha sossegada. Quando os vejo tomar drogas usando de um doentio escrúpulo científico – conheci garotos que tomaram uma ou dois gramas de um composto químico e que ficaram mais de oito horas acesos, rígidos, enquanto tentavam dar cabo das agonias, numa lombra infeliz; a doideira plástica e "clean" num apartamento a beira mar -, fico longe. E escapo pela tangente com uma desculpa qualquer. Ou então vou dar um saque num livro ou dar umas voltas sentimentais pela minha rua.

Tive minhas lombras. Assim como meus momentos de dúvida crucial. Mas sempre havia uma chance, um toque, uma noite a mais ou um amigo que, do nada, surgia na porta de sua casa para lhe convidar para umas cervejas, ou mesmo para um fuminho. Quando nada, um disco do Hendrix, artigo raro, debaixo do braço.

Já me chapei pra me arrepender e senti medo. Mas era o risco que fazia parte do aprendizado. O medo dos velhos te pegarem com o fedor nas pontas dos dedos; o medo da sogra que, com um olhar inquisidor, perguntava sobre a escola e os tais planos para o futuro, enquanto você já sabia que, dali a instantes, iria bolinar sua linda filhinha na ampla varanda, cheias de plantas aparadas, quadros sem graça e gatos imundos.

O medo de ficar naquela onda durante horas.

Ou então o policial que fazia a ronda num bairro distante e que, com um riso cúmplice, nos oferecia o isqueiro. O luar ainda vitorioso, mesmo que fosse dia nublado. E a gente encarando o matagal que terminava no campinho de futebol.

Eu lembrei de tudo. De cada detalhe e amigo. Ainda que alguns tenham se entregado, e rezem na cartilha das religiões do desespero, os admiro.

Queria vê-los: Badaró (cujo pai era um alcoólatra inveterado e terminal; hoje Badaró é um notável soldado da corporação militar) Tom, Laurindo, Simone, Chico, Amarílio (que foi pro Rock in Rio I e voltou quatro anos depois); André Nariga, Pereira, Animal (que me mostrou a real utilidade das Bíblias: seu papel dá uma ótima seda), Isabel (cuja mãe jogava tarô e nos predizia um futuro de glórias incertas), Morcego, “De mel” (que deu um cano num hotel e fugiu), Daniel e Isac (até hoje dois remanescentes corajosos dessa época; ainda os mesmos garotos geniais de antes).

Tantos outros. Muitos, andando por aí, dando cabo das coisas que a vida exige. Talvez cansados e barrigudos; ou quem sabe verdadeiramente felizes em terem superado àquela época. Eles são meus verdadeiros mitos. Que os gregos se fodam. Se sou um cara prodigioso e, por vezes, confuso, agradeço a eles e ao Camisa de Vênus. Numa boa.

3 comentários:

João Ludgero Sobreira Neto Ludgero disse...

Gustavo, seu texto é genial, pois só quem viveu essa época sabe bem a mensagem que você que passar. Eu vivencie quase todas estas ondas que você sita, e concordo plenamente com tudo o que você escarrar, nesta época aqui no Crato, curtiamos muito o Camisa, e uns amigos (Marcos Vinicius, Calazan, Lupeu e outros) mais coroas do que nós tinham uma banda que seguia a linha do Camisa, era os Pombos Urbanos, eri tempo massa!

Foi Boa!

Ludgero

Anônimo disse...

pois é meu velho. tem outro cara que eu curto, nem sei se todos curtem, mas enfim: julio barroso, da gang 90. abçs mermão

Anônimo disse...

pois é meu velho. tem outro cara que eu curto, nem sei se todos curtem, mas enfim: julio barroso, da gang 90. abçs mermão