Em plena reunião do G-20, Chávez saiu de sua cadeira e foi até onde estava Barack Obama. Nas imagens de tevê que registraram o fato ficou nítida a perturbação inicial do ianque, conhecedor da rotineira falta de juízo do venezuelano. “O que esse sujeito vai aprontar?”, deve ter pensado durante a aproximação. No entanto, Chávez lhe trazia um regalo e o presidente norte-americano descontraiu-se de imediato. Tratava-se de uma versão da obra “Veias abertas da América Latina” do uruguaio Eduardo Galeano.
Para quem não sabe, o livro em questão, vendido como sendo uma leitura que rompe com o ensino tradicional da História, foi publicado em 1971 e sustenta tese originalíssima: nosso subcontinente é pobre porque sempre foi explorado – primeiro pelas metrópoles ibéricas, depois pelos ingleses e, finalmente, pelos norte-americanos. Tenho certeza de que sequer o esclarecido leitor destas linhas tinha notícia de tão inovadora visão da realidade regional, não é mesmo?
Ironias à parte, o mais alienado colegial dos anos cinqüenta do século passado lembra que esse assunto, já então, era tema de colégio. Ora trazido por professores formados na academia dos anos 30, ora por jovens militantes da esquerda, doutrinados nas células onde se planejava o assalto ao poder para alinhar o Brasil com as “admiráveis conquistas da humanidade” alcançadas pela defunta União Soviética.
Enfim, essa é a tese do livro que Chávez escolheu a dedo para presentear a Obama, o que mostra o quanto está atualizada a leitura do caudilho instalado no Palácio de Miraflores. Na mesma semana em que seu pupilo boliviano Evo Morales se declara comunista, marxista e leninista, Chávez resolve entregar esse mimo ao presidente ianque. Se é para ajudá-lo a dormir, faria melhor presenteando-o com um móbili.
O supostamente revolucionário livro de Eduardo Galeano é, na verdade, uma obra reacionária que conspira a favor da ideologia do autor e contra a prosperidade dos nossos países, atribuindo os problemas sociais e econômicos da América Ibérica à ação de maliciosos agentes externos que se vêm aproveitando da nossa inocência. Nada melhor do que a realidade cubana para o desmentir. Há meio século, a antiga Pérola do Caribe rompeu com os Estados Unidos, assumiu, sem pagar um centavo, todo o patrimônio norte-americano na ilha, nunca mais enviou lucro para o exterior, abriu a veia dos russos e passou a beber sangue soviético, em rublos, durante trinta anos. Resultado? Cuba virou uma sucata e atribui sua miséria a quê? À má vontade comercial dos Estados Unidos. Me poupa, Galeano.
Quem leva a sério o livro em questão, a exemplo de Chávez, se deixa cegar pela ideologia e acaba acreditando que somos pobres por culpas alheias. Até parece que aqui sempre se valorizou o trabalho, o mérito e o espírito de iniciativa. Até parece que aqui sempre tivemos bons governos, instrumentos políticos corretos, gestão fiscal rigorosa e elevado espírito público. Até parece que aqui se combate a corrupção e se cultuam elevados valores. Até parece que aqui lugar de bandidos e de corruptos é na cadeia e a Lei se impõe igualmente a todos. Com tantas e tão nobres condutas, se temos uma sociedade às voltas com problemas sociais e econômicos só pode ser por culpa dos outros, não é mesmo? Ou, como contestou alguém, num site em que se discutia a dívida pública brasileira, iniciada com a Independência: “Tente dizer ao seu patrão que não vai trabalhar hoje devido a um resfriado que você pegou há dez anos”.
2 comentários:
Livros
por Reinaldo Azevedo
A bíblia da esquerda herbívora
"As Veias Abertas da América Latina é um livro errado desde as primeiras letras, uma coleção de lamúrias e desastres em busca de culpados. Pouco importa que os fatos desmintam sua tese. Para as esquerdas, mais importante é a moral da história. Na de Eduardo Galeano, o lobo, como sempre, come o cordeiro"
Alguns equívocos já nascem póstumos. Ficarão estampados nas mentalidades, a indicar o caminho mais fácil e errado para compreender problemas complexos. É o caso de “As Veias Abertas da América Latina”. O livro do uruguaio Eduardo Galeano (1940), publicado em 1971, é sucesso nos Estados Unidos desde que o ditador da Venezuela, Hugo Chávez, presenteou com um exemplar o presidente americano, Barack Obama. Os dois se encontraram na 5ª Cúpula das Américas, na semana retrasada, em Trinidad e Tobago. Pensadores dividem hoje a esquerda latino-americana em "vegetariana", a mais moderada, e "carnívora", a mais radical. Galeano é a esquerda herbívora.
“As Veias Abertas” é um livro errado desde as primeiras letras: "Há dois lados na divisão internacional do trabalho: um em que alguns países se especializam em ganhar, e outro em que se especializam em perder. Nossa comarca do mundo, que hoje chamamos América Latina, foi precoce: especializou-se em perder desde os remotos tempos em que os europeus do Renascimento se abalançaram pelo mar e fincaram os dentes em sua garganta".
Fotos dos chefes de estado presentes à cúpula evidenciam o erro: quase não há brancos – "europeus" – ali. Resultado certamente de muita dor e de muita luta, as Américas são governadas por mestiços. A mistura de europeus e índios foi "amaciada pelo óleo da mediação africana", como diria o brasileiro Gilberto Freyre em “Casa-Grande & Senzala”. Galeano, branco e de olhos azuis, só vê exploração, sangue e miséria.
O erro persegue todo o livro, na 46ª edição no Brasil (Paz e Terra; 365 páginas; 50,50 reais). Observem que a América Latina aparece sob o signo da derrota desde o alvorecer. Para o autor, os EUA são os continuadores da espoliação espanhola e portuguesa. E como ele estabelece o liame entre o mercantilismo, a expansão capitalista dos séculos XVIII e XIX e a potência imperial do século XX? Não estabelece! Devemos acreditar que alguns países nascem do lado errado da força. No trecho citado, Galeano fala em "divisão internacional do trabalho" no Renascimento! Até um marxista simpático às suas lamúrias deve se constranger com a bobagem.
Mas por que o livro ainda enfeitiça as esquerdas? Galeano, um jornalista com ambições literárias, conseguiu reunir uma formidável coleção de clichês da luta do opressor contra o oprimido – eu não inverti os termos, não. Um suposto paradoxo marca suas análises: se há países bons no lado mau da divisão internacional do trabalho – e também o contrário –, a história da América Latina é uma sucessão de confrontos entre homens bons invariavelmente derrotados, e vice-versa. A condição de vítima, na política, é um lugar disputado porque confere licença para uma luta que dispensa pruridos morais.
“As Veias Abertas” pretende fazer a síntese de quase 500 anos de "exploração" segundo a ótica do "explorado". O sangue latino-americano teria sustentado o fausto das metrópoles, trapacea-das, por sua vez, pelos ingleses, e continuaria, no mundo contemporâneo, a exportar os excedentes de capital para os países centrais. Leiam um trecho em que Galeano cita o economista brasileiro Celso Furtado:
"Celso Furtado adverte que os senhores feudais obtinham um excedente econômico da população por eles dominada e o utilizavam, de uma forma ou de outra, em suas próprias regiões, enquanto o objetivo principal dos espanhóis, que recebiam do rei minas, terras e indígenas na América, consistia em subtrair um excedente a fim de transferi-lo para a Europa (...) No fim das contas, em nosso tempo, a existência dos centros ricos do capitalismo não pode ser explicada sem a existência das periferias pobres e submetidas: umas e outras integram o mesmo sistema".
Não sei se notam a indiscreta simpatia pelo feudalismo... Karl Marx lhe daria umas boas chicotadas. Vejam como o mundo se torna fácil de explicar: os ricos existem porque existem os pobres, e a exploração destes faz aqueles. Era assim em 1500, era assim em 1971, é assim hoje – e Chávez pretende convencer Obama dessa verdade.
Falemos um pouco da mentalidade de uma época. A referência das esquerdas era o economista americano Paul Baran (1910-1964), um marxista para quem o subdesenvolvimento é um produto necessário do imperialismo, e a impossibilidade de o capitalismo se desenvolver nos países periféricos é um dado da equação, já que estão impedidos de ter mercado interno. Tornam-se variantes modernas das colônias de exploração do século XVI. Na sociologia e na política, um livro reflete esse espírito: “O Colapso do Populismo no Brasil” (1968), de Octávio Ianni, para quem a falência dos governos populistas, provada em 1964, demonstrava que o Brasil teria de escolher uma de duas opções: ou revolução ou subdesenvolvimento.
Os dois livros são quase contemporâneos de uma tese bastante conhecida, que sustenta o contrário: a possibilidade do desenvolvimento do capitalismo nas nações "dependentes". Seu autor? O sociólogo Fernando Henrique Cardoso, que escreveu, em parceria com o chileno Enzo Faletto, o livro “Dependência e Desenvolvimento na América Latina”. O Brasil nem acabou nem fez a revolução socialista. Adivinhem quem estava com a razão. O mercado interno foi a principal força de sustentação do regime militar e é, hoje, um dos esteios da economia em plena crise global. Bingo!
Não foi só o tempo que se encarregou de evidenciar o erro de Baran e seguidores. Livros como o de Galeano e o de Ianni já nasciam velhos. Qual é a bobagem fatal do autor de “As Veias Abertas”? A suposição, a partir já de eventos da colonização (e ele fala como um asteca ou um inca, não um Galeano de olhos azuis...), de que o atraso é sempre obra do estrangeiro explorador. O Brasil é um exemplo de que a tese é falsa. O país rompe o século XIX como a maior economia das Américas. Entre 1800 e 1900, seu PIB passa a ser um décimo do PIB dos EUA. Obra legítima dos nativos. Fizemos e fazemos o nosso próprio atraso.
O livro de Galeano é uma coleção de lamúrias e desastres em busca de culpados. Pouco importa que os fatos desmintam a sua tese. Para as esquerdas, mais importante é a moral da história. Na de Galeano, o lobo, como sempre, come o cordeiro. Alguns líderes latino-americanos, a exemplo de Chávez, pretendem se fingir de cordeiros para "fincar os dentes na garganta" dos adversários. Galeano é o delírio herbívoro da esquerda carnívora.
Ótimo texto Armando.
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