TRIPULANTES DESTA MESMA NAVE

sexta-feira, 1 de maio de 2009

O Fato e a Versão

Alguém já afirmou que a versão é muito mais importante do que o fato em si. Talvez seja justamente esta lei que resume toda atividade jornalística. Houve um tempo em que as informações circulavam de boca em boca e, claro, que, a cada passagem de língua, as histórias iam tomando nuances próprias que dependiam da capacidade inventiva do povo, mas, também, dos muitos interesses envolvidos no enredo que cada um passava adiante. Os primeiros meios de comunicação de massa como jornais e rádios trouxeram a possibilidade de multiplicar a difusão das histórias e os poderes político e econômico perceberam, rapidamente, que tinham em mãos um instrumento poderosíssimo. Passavam a ter controle de milhares de línguas com capacidade de espalhar a versão que mais lhes interessava. Podiam cometer os crimes mais hediondos, as fraudes mais estapafúrdias, a corrupção mais deslavada pois possuíam nas mãos a mídia capaz de torná-los santos e cândidos. Detinham o monopólio das versões. Assim não existe jornalismo imparcial, a informação sempre está a serviço de grupos ideológicos e econômicos. A luta sempre deve ser no sentido de que todos tenham igual acesso democrático à veiculação das suas versões e, mais, que tenham apurado senso crítico para perceber, claramente, que interesses existem mascarados por trás de cada notícia veiculada. Com a globalização das informações nos últimos tempos, esta arma midiática se tornou bem mais poderosa, mas , por outro lado, democratizou-se mais e fugiu um pouco ao controle do Poder. O grande problema nos dias atuais é filtrar , no meio do turbilhão de versões acessadas, aquelas com um mínimo teor de credibilidade e, mais, entender a intenção subjacente.
Em Matozinho, Gutemberg ainda não havia chegado com suas prensas. A informação e a contra-informação perambulavam de língua em língua e se amplificavam apenas nas rodinhas da Praça da Matriz, na Igreja e nas conversas no Bar do Giba e na Botica de Janjão. Além disso, havia naturais difusoras na vila que eram suas fofoqueiras, imprescindíveis ao leva-e-traz, à fabricação de inimizades e à tessitura de intrigas. Algumas, como D. Filó, morassem em cidades maiores e mais conflituosas, já teriam envenenado as relações internacionais e o planeta já estaria vivendo, segundo Rui Pincel, sua quarta ou quinta Guerra Mundial.
Segundo nosso filósofo, quem primeiro em Matozinho percebeu a importância da versão e não do fato em si, teria sido o velho Chico Liberalino. Ele vivia na cidade do aluguel de alguns imóveis que herdara do pai. Nunca fora de muito trabalho. Suor de Chico, no dizer de Rui Pincel, tinha poder de curar tudo quanto é enfermidade perigosa: câncer, paludismo, hidropsia e “até está tal de gripe do bacurim que vai terminar chegando por aqui”. Chico tinha um filho que herdara do pai a mesma disposição. Grandão, meio destrambelhado e gorducho, andava com passadas largas como quem toma chegada prá atirar em nambu. Confiado no tamanho, Albericão gostava de se meter em arranca-rabos, geralmente escolhendo com cuidado seus contendores entre os mais franzinos da cidade. O filho de Chico contava uma vantagem danada. Aumentava seus atos heróicos e seus embates e epopéias, traçando histórias que fariam inveja a Ferrabraz.
Um belo dia, pai e filho saíram para cobrar um aluguel atrasado de Zé do Sal. O homem alugara um pequeno quartinho a Liberalino e lá instalara uma bodega sortida. Vendia de um tudo. O comércio vivera até com certa estabilidade até que Zé se acoloiou com uma mulher dama da Rua do Caneco Amassado. O estabelecimento começou a não dar lucro suficiente para sustentar as duas famílias e, mais, pagar o aluguel de Liberalino que já varava mais de três meses sem o devido ressarcimento. Foi com este mister que Chico e e Albericão saíram decididos a ter a pendenga resolvida. Zé era um rapazinho franzino e meio empererecado. Só que morara durante muitos anos na Bahia e lá se fizera professor de capoeira, embora nunca tivesse exercido esta função após a volta a Matozinho, possivelmente por falta de alunos.
Em lá chegando, pai e filho, colocaram Zé na maior sinuca de bico. Queriam porque queriam o atrasado. De início a conversa até transcorreu com uma certa civilidade, mas rápido partiu para a agressão verbal. Albericão, confiado no seu físico, resolveu ir às vias de fato e exemplar o inquilino. Não sabia das proezas marciais de Zé. Nas primeira tentativa de tapa, recebeu Albericão uma pernada no tronco das orelhas e se estendeu no chão. Zé do Sal, num salto de felino, pulou em cima e passou a bater nele sem pena. Nisso Liberalino , ciente de que não poderia ajudar muito ao filho, resolveu utilizar o poder da propaganda. Como a briga acontecesse no interior da bodega, em pleno dia de feira, Chico se pôs na porta do estabelecimento e começou a gritar a plenos pulmões :
--- Vamo Simbora, Albericão, já basta ! Num mate o homem de peia não ! Já basta, meu filho ! Ele vai terminar pedindo o caco!
Albericão sofreu uma surra fenomenal mas até hoje Matozinho conta uma versão que ele fez Zé do Sal se mijar todinho com o tamanho da sova que lhe aplicou.

J. Flávio Vieira

6 comentários:

Maurício Tavares disse...

Zè Flávio gostei muito de ler seu texto. O exemplo para ilustrar sua tese é engraçado e pertinente. Só acho que na primeira parte há um pouco de exagero (ou um pouco de simplificação) ao tratar do papel da imprensa. A notícia em si já traz o embate de versões na sua construção (o jornalista, às vezes, não comunga o ideário e nem a situação econômica do patrão). De qualquer forma todo relato é uma versão, não existe o relato fiel (parece que Vicelmo ainda usa esse bordão no seu noticiário). Já há algum tempo a famosa objetividade jornalística vem sendo contestada. De qualquer forma existem versões que se aproximam mais da realidade. Pelo menos da nossa realidade.

jflavio disse...

Obrigado pelo comentário, Maurício e concordo com a simplificação possível e o exagero. Na verdade não existe a imparcialidade nem no jornalismo e, creio, nem na história, no fim tudo é versão.
abraço,

José do Vale Pinheiro Feitosa disse...

Caros Maurício e Zé: primeiro já vou dizendo que não quero briga. Mas acho que vocês se acomodaram no fato de que o jornalismo é uma versão do fatos. Ou seja, tornaram o fato em uma versão. Agora uma versão não é meramente uma porta de afastamento dos fatos, pois verter é traduzir, são modos diferentes de abordá-lo. Sei que vocês não iriam por aí, embora na entrada de Matosinho ao falar da manipulação midiática ou do acontecido como versão Zé do Sal, temos uma das compreensões possíveis para versão e usada por extensão de sentido: notícia ou história infundada; boato, rumor, balela. A observação de fatos (que apenas o são quando fenômenos já acontecidos) continuarão sendo vertidos pela narrativa, mas a unidade de compreensão tenderá sempre a consolidá-los com tal. No futuro alguém até poderá reinterpretá-los, mas sempre haverá um meio de compreender o passado e entender como viram os fatos. Em outras palavras a manipulação da mídia é condenável objetivamente e não é uma versão dos fatos.

Maurício Tavares disse...

Zé do Vale é claro que existem manipulações mas matéria-prima do bom jornalismo é a "verdade". O que apontei no texto de ZÉ FLávio foi a redução de toda mídia a uma grande xcentral de conspiração e manipulação. No meu texto fiz questão de frisar que podemos nos aproximar de um relato objetivo. O que não podemos é reproduzir fielmente os fatos.

jflavio disse...

Como diria Ortega Y Gasset qualquer versão é, sim, uma parte da história real, ela é nossa "circunstância". Como num quebra-cabeças devemos reunir os diversos cacos para se ter uma idéia mais aproximada da antiga pintura que um dia existiu na parede. Mesmo versões contraditórias, assim, fazem parte desta "circunstância". Claro que cada um apanha o caquinho que mais lhe interessa e tenta reproduzir com ele a imagem antiga sem lembrar que é preciso juntar mais fragmentos esparramados pelo chão.

Maurício Tavares disse...

Muita boa a citação, Zé Flávio. Uma pessoa bem informada hoje em dia precisa ler as várias versões de um fato. Mesmo que os autores das diferentes versões "acreditem" que só eles dizem a verdade. Cabe ao jornalista/historiador ser o mais isento possível. Mas há limites para essa isenção.