"Dentro de mim mora um grito.
De noite, ele sai com suas garras, à caça
De algo para amar."
(Sylvia Plath)
Noite de São João. Fogos ribombavam ao redor das fogueiras. Meninos hipnotizados com o brilho das chuvinhas, mal perceberam quando um balão cruzou os céus e , pouco a pouco, se foi distanciando das dimensões terrestres. À medida que, impulsionado pelo vento, ia subindo, mais e mais se tornava imperceptível e inatingível. Sem lastro que o amarrasse à terra, ao sabor do vento, o balãozinho se foi perdendo de vista, até ser consumido pela própria chama íntima que lhe servia de motor. Cá embaixo, a festa continuou com o mesmo estardalhaço. A ninguém interessava a pequena e distante tragédia do balãozinho. Seu trajeto significou apenas um brilho a mais no firmamento, numa noite grávida de tantos fulgores e cintilações.
Michael Jackson , um dos mais completos artistas destes últimos séculos, fez um trajeto curto e fulgurante como nosso balãozinho junino. Vida exígua, estrada cintilante, ergueu aos céus o seu balão atormentado. Sequer se deu conta que a luminância que dele irradiava , se intensa e ofuscante, era apenas a conseqüência das chamas que consumiam sua frágil estrutura. Michael sempre fora um balão sem lastro. Precoce gênio do pop, a mídia , como uma forte lufada de vento, o tomou de assalto ainda aos cinco anos. Levado de supetão às alturas, o ar lhe foi ficando cada vez mais rarefeito. É que, em troca, haviam lhe roubado o menino que nunca pôde ser. Bilionário, famoso, nada lhe faltava : apenas este lastro fundamental. Com ventos tão oblíquos , carregou seu dirigível acorrentado , à deriva. Michael procurou , durante toda a existência, desesperadamente, aquela criança que lhe foi roubada: nas mulheres em quem buscou o regaço materno; em filhos que não gerou; no parque que construiu para si mesmo, o Neverland , sintomaticamente chamado de “Terra do Nunca” ; no pai que nunca teve.
A mesma mídia que ajudou a criar o mito mais popular da história da música e que lucrou imensamente com ele; encheu as burras , novamente, na sua derrocada , explorando escândalos midáticos de toda espécie e, agora, com seu desaparecimento, empanturra mais uma vez os cofres : Michael volta a vender discos como nunca. Tudo é festa. O velório do Rei do Pop já se arrasta por mais de uma semana, atapetando todos os noticiários de fofocas e futricas. Com exceção de algumas de crocodilo, de alguns fãs, não há lágrimas derramadas. Nem da esposa, nem dos amigos, nem dos irmãos. O pai, então, aparentemente, só se preocupa com o testamento. A mídia toda aguarda , ansiosa, o resultado da necropsia. Todos sabem que Michael morreu de um acidente com um dos inúmeros anestésicos que utilizava continuamente para aplacar sua dor. Qual ? A quem interessa? O astro, na realidade, padeceu em conseqüência da dor e não do analgésico, a terrível dor de lhe terem amputado sem qualquer analgesia, o menino que devia ter brincado de esconde-esconde nas ruas, com outras crianças, chupado o dedo, jogado bola e soltado pipa. Sem esse menino seu balão , voou à deriva, numa enganadora liberdade, mas nunca deixou de ser um reles balão cativo: fama, lama, chama.
J. Flávio Vieira
6 comentários:
Adorei a epígrafe de Sylvia Plath.
Grande Maurício,
Se o prato não é lá essas coisas tem que se caprichar no molho.
Abraço,
José Flavio,
Li muitas materias e ouvi tantos noticiários sôbre este foco do momento, mas quero lhe dizer que viajei naquele balão...
Sua escrita sempre pede mais do o leior sem cansaço busca nas palavras a ânsia de descobrir o que já tem certeza de encontrar.
Escreveu o que faltou em todas as notas sôbre o gênio pop. Descreveu as dores, a imcompreensão, os abutres, o desprezo e a ganãncia de todos a espera dos lucros. Sem se preocuparem com a alma e ausência de valores da pessoa que foi atrás das cortinas da fama.
Parabéns pelo lindo texto !
Com a minha admiração!
Edilma
Qual o quê, amigo, no seu texto sorvir o ágape por completo. Aperitivo, prato principal e sobremesa, com direito a um reconfortável arroto,à moda alemã.
Zé,
Perfeito !
Caros Edilma, Zé Newton e Socorro,
Agradeço a vocês pela paciência em ler o texto e pelos comentários tão pertinentes.A gente fica atônito quando vê um artista tão completo como ele ter enchido o mundo de emoção e sentimento e não ter conseguido sorver da felicidade que a tantos proporcionou.
Abraço
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