TRIPULANTES DESTA MESMA NAVE

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

A Primeira Pedra




Sakineh Mohammadi Ashtiani é uma iraniana de 43 anos e que nestes dias se tornou notícia na imprensa mundial . O motivo, como sempre, nestes casos em que envolve países do terceiro mundo, vem à tona com as piores causas.Mais ainda quando o Irã vê-se metido numa controvérsia mundial sobre a produção de armas nucleares. Nada de fatos heróicos, de recordes , de fabulosas obras de arte . Sakineh foi condenada à morte , por um motivo banalíssimo. Viúva, mesmo assim, foi acusada de adultério e recebeu a penalidade absurda e, não bastasse isso, mais terrível ainda na sua forma. Deverá ser enterrada a meio corpo e morta por apedrejamento. A sentença parece até ter sido arrancada de tempos bíblicos. E, por mais incrível que possa parecer, o foi. Boa parte dos países islâmicos não têm qualquer separação entre Igreja e Estado e a Constituição do país, os Códigos Civil e Penal terminam por se resumir nas páginas do Alcorão. O livro sagrado dos mulçumanos tem mais de mil anos e, como tal, não sofreu qualquer upgrade em todos esses anos. A maior parte das religiões do planeta padece deste dissonância entre as inflexíveis regras de moralidade ditadas por seus livros ditos sagrados e a dinâmica natural do universo e dos costumes. Como conciliar a estática daquilo que foi ditado há séculos, com o dinamismo da vida e as transformações avassaladoras do mundo que a cada instante modifica-se da água para o vinho, como um caleidoscópio? Quando Estado e Igreja formam um só corpo, então, as fissuras se tornam presentes, enormes, irreconciliáveis. Imaginem se no Brasil os casos de adultério fossem todos tratados da mesma forma? Ia faltar pedra no mercado para atirar em tanto condenado. Houve uma forte pressão da comunidade mundial e, ao que parece, o apedrejamento foi cancelado e a pena comutada para enforcamento. Grande vitória da diplomacia mundial!

A questão referente a Sakineh traz consigo um sério impasse ético. Na nossa visão ocidental, existe uma perversidade impensável na sentença imposta à iraniana. Que direito tem o estado de se imiscuir numa pendência de caráter francamente afeito à individualidade da pessoa humana? E mesmo que se tipifique o adultério como crime, a pena de morte nos salta aos olhos como uma loucura ímpar. Mas surge, no horizonte, a encruzilhada ética: temos o direito, com nossa cultura ocidental, de julgar os atos, as leis, os costumes de uma outra cultura? Qual o balizamento para se depreender que nós estamos certos e eles errados? Eles, do seu lado, têm o mesmo sagrado direito de nos julgar segundo suas regras e tradições. Para que lado a verdade puxará o fiel da balança?

Por outro lado, quase ao mesmo tempo, os jornais estamparam o caso da Eliza Samúdio suspeita de ter sido trucidada cruelmente pelo goleiro Bruno em Belo Horizonte. Sem falar no assassinato da advogada Mércia Nakashima, de São Paulo, cujas evidências levam a suspeita da autoria ao namorado Mizael. Mera coincidência? Infelizmente, não! No Brasil, por incrível que possa parecer, a pena de morte contra a mulher é uma instituição organizada e azeitada. Na última década mais de 41.000 mulheres foram mortas, uma média de 10 a cada dia. Destes casos, mais da metade foi causada por motivo fútil, como meras discussões domésticas. 10% envolviam ciúmes e, um outro tanto, o uso de drogas. No Ceará mais de mil boletins de ocorrência são feitos a cada mês por violência contra a mulher.E aqui, entre nós, só no ano passado, foram assassinadas 147 e --pasmem, amigos ! -- 23 só aqui no Cariri.

No mundo todo, a situação do sexo feminino não é menos vulnerável. Estima-se que na América Latina e Caribe entre 25% a 50% das mulheres sofrem violência doméstica. Segundo o Banco Mundial entre 5 a 16% dos anos saudáveis de uma mulher são perdidos por conta da violência, que só nos Estados Unidos custa entre 5 a 10 bilhões de dólares todo ano.

Como vemos, a absurda penalidade imposta a Sakineh, não lhe é exclusiva. Até mesmo a crueldade da execução é quase uma regra: apedrejada , esquartejada, oferecida à ração de cães, afogada, queimada. O que varia ? No Irã, o estado submete o réu ao menos a um a julgamento, faccioso , parcial, certamente. Entre nós, no entanto, o júri , o juiz e o carrasco são os próprios companheiros destas jovens que as executam sumariamente sem nenhum direito a defesa.

Para combater essas as formas de opressão é preciso ter coragem de mergulhar no pântano e buscar a raiz da árvore carnívora.. É preciso, no entanto, lembrar que a absurda pena imputada a Sakineth é mais visível e mais fácil de se lutar contra ela. A violência doméstica, no entanto, é mais insidiosa, mais virulenta, mais oculta, mais multifacetada. Ela está na raiz de quase todas as formas de violência do mundo e, como um cupim, destrói lentamente toda a tessitura das relações humanas. Uma estranha ponte une Sakineth a Eliza Samúdio. Desarmemos os corações e as mentes! Antes de tudo tem-se que entender que somos todos animais que há pouco descemos das árvores e ainda não conseguimos de todo escapar da Lei da Selva, da prevalência do instinto sobre a razão. Quem nunca compactou com alguma forma de violência que atire a primeira pedra!

J. Flávio Vieira


5 comentários:

lupin disse...

zé flávio, seu texto (lúcido e imparcial), acende uma luz nas cabeças das pessoa acostumadas a ler as noticias dos jornais, como algo estanque. as pessoas leem as notícias como se cada uma contivesse em si a sua própria raiz:começa e termina ali mesmo.
sabemos que não é bem assim: os jornais são viciados em pesar os fatos em balanças de suas conveniências.
temos (péssimos) exemplos das coberturas da imprensa em diversos episódios (recentes ou não): os horrores do fim da iugoslávia, a invasão do afeganistão pela urss, as invasões do irã/iraque pelos eeuu... a lista é grande.
poucas pessoas (as mal compreendidas) tem a lucidez que você expõe no seu texto.
me purguei!!!!!!!!
grande abraço.

lupin disse...

zé flávio, só mais uma coisinha:
para as minhas postagens da série OS MISÓGINOS, colhi uma porção de textos, aforismos... de livros (ditos) sagrados,tais como, a bíblia (velho e novo testamento), leis de manu,, código bramanista... e de grandes pensadores: hesíodo, homero, buda, confúcio, aristóteles, lutero, voltaire... todas tratando a mulher como um ser inferior, ignóbil, vil, desprezível...
a raiz da "misoginia" convertida em violência tem raízes muito profundas.
sabemos que a violência contra as mulheres é perpetrada por pessoas de todas as classes sociais e níveis culturais.
é um monstrengo de bocas e garras ávidas por novas vítimas.
me purguei 2!!!!!!!!!

jflavio disse...

Caro Lupin,

Pois é amigo, por trás de cada notícia tem a versão ( "O que importa não é o fato, mas a notícia...")e que termina depois por compor a história oficial. A raiz dessa implicância contra as mulheres, como vc tão bem frisou, tem um longuíssimo passado. No fundo, como todo preconceito, serve para justificar as mais terríveis injustiças. Desde o Gênesis a mulher é acusada do nosso despejo do paraíso. Grande abraço e obrigado pelos comentários.

Andreia galvao disse...

Gostei muito da postagem!sou acadêmica do curso de história da UEG (GO) e discutirei em minha monografia a "questão de gênero". teu texto me ajudou em importantes reflexões!
Como muito bem observou teu amigo Lupin, a violência (física e/ou psicológica)contra a mulher teve, ao longo do tempo, adeptos ilustres. Dentre estes, acrescentaria ainda outro filósofo influente: Rousseau.
Este, ao aconselhar que a educação da mulher fosse exclusivamente afim de lhe ensinar o exercício sublime e NATURAL de sua existência, vale dizer, uma educação para ser esposa e mãe, (todo o resto seria, para ela, cultura inútil e perigosa. Pasmem!)ajudou, e muito, a retardar sua emancipação.
O resultado desse pensamento é presente ainda hoje, infelizmente.
Abraços goianos!
Andréia Galvão

lupin disse...

apareça mais vezes, andreia.
o blog precisa e oxigenação intelectual.
abraços.