TRIPULANTES DESTA MESMA NAVE

quinta-feira, 31 de março de 2016

Dolores


J. Flávio Vieira



                                                               Em meio ao curso de um golpe aos direitos democráticos, empreendido  pela Casa Grande e seus Capitães-do-Mato: A mídia  e a pseudo-justiça brasileiras , quando os vampiros afinam os dentes para tomar conta do Banco de Sangue; um fato, nesta semana, nos remeteu aos tempos da Inquisição. No Rio Grande do Sul, a pediatra Maria Dolores Bressan enviou uma mensagem, a uma cliente, informando que não mais atenderia o filho desta, seu paciente desde tenra idade, pela gravíssima razão de o menino ser filho de uma militante do PT e de um filiado do PSOL. Ariane Leitão, a mãe do pimpolho, é vereadora em Porto Alegre e foi Secretária Estadual de Políticas para as Mulheres. Injuriada com a atitude preconceituosa  da profissional, procurou a justiça e divulgou seu desapontamento nas Redes Sociais. Em tempos de acirramento dos conflitos de classes , quando o retorno  à era pré-1888 volta a ser o grande sonho da elite brasileira, estabeleceu-se uma polêmica digna do velho faroeste.  O presidente do Sindicato dos Médicos gaúcho deu entrevista justificando plenamente a atitude da Dra. Dolores e mais afirmando que ela precisa se orgulhar da decisão tomada. Embasou seu parecer no Código de Ética Médico  ( inciso VII, dos Princípios Fundamentais) , que reza : salvo casos de emergência, o médico pode se negar a atender pacientes que não lhe interesse o atendimento. O Conselho Regional do Rio Grande do Sul, o fórum específico para julgamento de ilícitos éticos, aparentemente não comunga desta mesma ideia.  
                                   A atitude da Dra. Dolores me pareceu estapafúrdia, típica desses tempos sombrios em que vivemos. Se o Sindicato saca o Código de Ética em defesa, o que me parece mais preocupante do que o destempero da profissional, bastaria olhar o inciso I , que abre os mesmos Princípios Fundamentais do Código  : “A Medicina  é uma profissão a serviço da saúde do ser humano e da coletividade e será exercida sem discriminação de nenhuma natureza” ou  a proibição expressa, claramente,  do Art. 23 :  “Tratar o ser humano sem civilidade ou consideração, desrespeitar sua dignidade ou discriminá-lo de qualquer forma ou sob qualquer pretexto.” E nem precisa lembrar, aqui, o famoso Juramento de Hipócrates que a Dra. Dolores, com os olhos marejados de lágrimas, deve ter, mão estendida, rezado na sua formatura: “Não permitirei que questões de religião, nacionalidade, raça, política partidária ou situação social se interponham entre o meu dever e meu paciente”. Num tempo em que os códigos éticos foram substituídos pelo Código de Barras de que valem essas palavras ritualísticas e milenares?  A rigor , na visão estreita do Sindicato dos Médicos do Rio Grande do Sul, qualquer médico poderá se recusar a atender um paciente invocando razões como : “Eu não atendo pacientes pretos!”; “Eu me nego a medicar homossexuais!”; “Aleijado? mongol ? Atendo nada! Xô ! Procurem a APAE”.
                                   Mesmo se nos detivermos apenas nos possíveis ou inexistentes ilícitos éticos na conduta da Dra. Dolores é sempre bom lembrar que  há preceitos acima dos simples códigos regulatórios. A Constituição e leis federais criminalizam discriminações de quaisquer espécies. A Declaração Universal dos Direitos Humanos, já no seu segundo artigo preceitua :  “Todos os seres humanos podem invocar os direitos e as liberdades proclamados na presente Declaração, sem distinção alguma, nomeadamente de raça, de cor, de sexo, de língua, de religião, de opinião política ou outra, de origem nacional ou social, de fortuna, de nascimento ou de qualquer outra situação.” E é sempre bom lembrar que D. Ariane Leitão, a mãe do menino rejeitado, não se enquadra naquele perfil típico dos que, dia-a-dia, são levados ao pelourinho pela Casa Grande : é branca, olhos claros, deve ter plano de saúde, vem de classe média alta e transita nas hostes políticas. Imaginem o que sofrem, no dia a dia, os negros, pobres, nordestinos , homossexuais nos Centros de Saúde, Brasil afora!
                                   Ao médico não deve interessar a que partido seus pacientes são filiados, se são honestos ou marginais, casados ou amasiados, se são budistas ou islâmicos, se são ricos ou pobres, a não ser, claro, que esta informação tenha alguma relevância na história clínica. Quando opero na urgência um bandido perigoso tenho que ter com ele o mesmo desvelo que teria com um santo; o julgamento devo remeter aos tribunais e a Deus.  Somos sacerdotes e não técnicos, somos médicos e não juízes. Todos devem ser tratados, com o mesmo cuidado e deferência, mesmo que esta meta esteja distante , ela tem que ser perseguida compulsivamente. No caso específico da Dra. Dolores e do Sindicato dos Médicos do Rio Grande do Sul que me parecem cúmplices, existe ainda um agravante, o paciente que foi rejeitado é uma criança que não tem filiação partidária e que está sendo punida simplesmente por conta do exercício democrático dos seus pais. Hitler e Torquemada possivelmente teriam sido mais piedosos.
                                   Em tempos em que a Democracia parece  um estorvo; em que a abolição dos escravos é tida como um excrescência; em que as larvas são convocadas para curar a  ferida; a atitude da Dra. Dolores pareceu normal e até elogiável.  Podem me chamar de velho e obsoleto, demente e louco, mas é preciso sonhar neste crepúsculo com uma aurora que já raiou e que, quem sabe, volte a encher o horizonte com seus raios,espargindo para longe tanta e tanta escuridão.

Crato, 31/08/16   
                                     
                                  
                                  
                                  
                                    

                                   

Um comentário:

Cory Matos disse...

Parabéns, o mais lúcido comentário que li sobre o tema. Que todos baixem as armas da intolerância, respeitemos às divergências políticas, lutemos por um Brasil que entendemos melhor, tendo, sobretudo, o respeito mútuo.