TRIPULANTES DESTA MESMA NAVE

terça-feira, 24 de julho de 2007

Não arrebentem meus tímpanos



Numa cidade do interior de Pernambuco, um homem matou três pessoas. Os homicídios são comuns no Brasil, estamos em primeiro lugar no mundo nesse item. O que não é comum é o motivo dos assassinatos. Ao ser preso, ele declarou ter matado a mulher e seus dois filhos porque não suportava o barulho que faziam em casa. Os vizinhos evangélicos passavam o dia com o som ligado no mais alto volume, escutando hinos em louvor a Jesus.
O criminoso será julgado por triplo homicídio. Desconheço se a agressão sonora que ele sofria servirá de atenuante. Provavelmente não. No Brasil, quase não existem leis sobre o controle de emissão sonora. Qualquer pessoa pode abrir um boteco junto de sua casa, ligar um som nas alturas, varando dias, noites e madrugadas. A vítima não encontra a quem se queixar, e quando o faz, as chances de resolver o problema são remotas.
Dizem que a cidade mais barulhenta do mundo é a do Cairo. Eu não posso dizer que sim, porque nunca fui lá. Mas conheço cidades brasileiras, pequenas e grandes, e poucas se destacam pelo silêncio, sobretudo no Nordeste. Todos se acham no direito de falar alto, ligar o som do carro no meio da rua, fazer publicidade em carros de som, manter televisões ligadas nos restaurantes, batucar em qualquer esquina. É um desrespeito. A facilidade de compra de aparelhos sonoros transformou as pessoas em agressores potenciais. O barulho na casa do seu vizinho é uma arma apontada contra os seus nervos.
No romance O Estrangeiro, do escritor argelino Albert Camus, o personagem Meursault comete um assassinato. Quando lhe perguntam por que matou, ele responde que por causa do sol forte. O assassino de Pernambuco atribuiu seu impulso ao descontrole nervoso, causado pelo som alto que escutava dias seguidos, sem desejar. Camus era um existencialista e escrevia sobre coisas absurdas. O assassino é um brasileiro que vive num país absurdo, onde as leis ou não existem ou não são respeitadas.
Falam que a emissão de ruídos por um trio elétrico, aquela fábrica de loucos inventada na Bahia, não pode ultrapassar a altura de tantos decibéis. Nunca ouvi falar de fiscais medindo em aparelhos o volume sonoro produzido. E se o trio de Ivete Sangalo estiver muito acima do que a lei determina? Será que vão mandar a baiana descer do carro e parar a geringonça? Duvido. No máximo aplicarão uma multa irrisória, que não será paga.
O presidente Lula reclama porque ninguém fala bem do Brasil. Falar bem de quê? Dos atrasos nos aeroportos? Das falcatruas de Renan Calheiros? Essa campanhazinha para que se enalteça o Brasil até me lembra a velha campanha da ditadura, quando cunharam o slogan "Brasil: ame-o ou deixe-o". Um gaiato sugeriu que o último a sair apagasse as luzes do aeroporto.
Não existe muito a quê fazer elogios, nem dá para relaxar e gozar como sugere a ministra sexóloga. Os múltiplos chiados não permitem. Desesperado, sem amparo da lei, sem saber a quem reclamar, o homem incomodado pelo volume alto de um som, atirou e matou três pessoas.
Seu ato será classificado como individualista. As ações individuais são freqüentes nos países onde não existe respeito ao coletivo. Desde a nossa colonização, construímos uma sociedade em que prevalecem os valores individuais, a competição e a rivalidade. A associação e o respeito ao direito do outro não fazem parte do caráter nacional. Basta olhar para os nossos políticos e comprovar o que escrevo. Corrupção e impunidade também são formas de assassinato. É igual ao som alto que rasga nossos tímpanos e nos enlouquece até o impulso de matar.

Ronaldo Correia de Brito ,Cratense/Recifense , é médico e escritor.

Escreveu Faca e Livro dos Homens.

Assina coluna na revista Continente

e no Site Terra Magazine

Nenhum comentário: