Dois pólos de uma única esfera. O Crato é uma esfera. As cidades muito antigas, em termos das Américas, têm esta forma geométrica. Como em as Cidades Invisíveis de Ítalo Calvino. As cidades esféricas são sólidas, toda a erosão que a formatou já ocorreu, ela está lixada, agradada em termos de saliências e crostas. Exemplos de cidades esféricas são aquelas do Recôncavo Baiano e a própria capital na Baía de Todos os Santos. Todas esfericamente distintas do Crato.
Enquanto os mulatos natos, mulatos do litoral, afinam a língua nas mercadorias exportadas pelos seus cais, o Crato é antes de tudo um forte. Bem no centro de centenas de léguas de um vazio agreste e sertanejo. O que lá se fazia, lá se consumia, o que lá ocorria de lá era a rudeza dos granitos e dos espinhos que bordejam a pluma de uma "coroa de frade". Enquanto os mulatos do litoral sincretizavam o tabaco de terceira categoria que vendia para a Baía do Benin e por esta vinha os pais dos mulatos comprados com a mercadoria que os mulatos inventaram, para depois chorar com os lanhos na carne de seus pais no Pelourinho. Não encontre a faca afiada dos mulatos natos do litoral, na esfera que nesta chapada se fez.
Há em muita gente o grande encantamento do bom gosto, da boa educação, do excelente acesso à informação e conhecimento. Encantam-se, viram casulos de borboleta, um dia esvoaçarão efêmero por sobre as flores, mas desconhecerão as folhas, galhos e troncos das plantas sobre o chão do Cariri. De alguns ouviremos a vanguarda, de outros a maledicência da mesmice conservada, de alguns o gosto duvidoso que é sempre nos outros, raramente a visão da esfera.
Não existem regras para se encontrar a esfera do Crato. Afinal todos já estão nela, mas alguns não a percebem. Uma noitada com álcool ferve um sentimento de rebeldia, alguém se sente no mundo, sim, alguns chegarão lá, mas a regra não é dizer que bebeu, bebeu até cair. Uma rodada com cigarro de maconha abre o universo com enfeites da individualidade, tão longe se vai sem dele mesmo sair. Um debate a seco e sem fumaça, pode dizer alguma coisa, pode, mas a simples denúncia da farsa, do farsante, não é o suficiente. Como vi, vivi e revi, o problema de não se encontrar a esfera não fica em Rosemberg Cariri, nos Irmãos Aniceto, em Vicelmo e nem na missa para salvar o Batateira.
Dois pólos de uma única esfera. Nos idos ingênuos dos sessenta e início dos setenta, a música de classe média, aquela que se balançava nos bailes era uma enxurrada de versões de pequenas canções Americanas, Inglesas, Italianas e Francesas. Até hoje os avós da era sentem nostalgia daquele pó de pirlimpim que apascentava os espíritos pequenos burgueses. Nossos conjuntos, aqueles que nos embalavam nas tertúlias da AABB e do Tênis tocavam isso e a revolução dos Beatles que não era, romanticamente, tão diferente assim. Depois, só depois, com a guerra do Vietnã, a ameaça da Bomba Atômica no pico da Guerra Fria a juventude rica dos países centrais se rebelaram e os Beatles foram outros.
No mesmo espaço e no mesmo tempo, ou seja na mesma esfera que é o Crato, outro pólo. Que o pólo oposto denomina popular. Neste pólo Waldick Soriano, Orlando Dias, Odair José, numa breguice latino-americana, que teimava em ser tão maior que o outro pólo e até hoje há quem sinta nostalgia de tamanho vigor. A disputa na esquerda estudantil entre Chico Buarque pelo seu vigor maior no protesto político e Caetano Velloso no seu linguajar parente do vanguardismo paulista tanto dos Andrades (Mário e Oswald) quanto do concretismo (Décio Pignatari e os irmão Campos) é bem o ermo em que nos perdemos da esfera.
A brincadeira não é chorar pela pobreza cultural do vizinho, pela farsa estética do outro, pela insulamento da torre de marfim, é tatear a superfície da esfera com tudo que nela há. E como esfera tudo rola. Não ponhamos regras: é difícil juntar numa mesma roda um enomante com um expert em Jazz (improbabilidade física, duas vaidades não ocupam o mesmo lugar no espaço), é difícil juntar forró eletrônico dominante com música sufocada, é difícil juntar vozes que discordam é difícil abordar o difícil. Mas não ponhamos regras a esfera já nos deu a superfície para discorrer.
5 comentários:
Belo texto.
Extensa intelectualidade.
O que me assusta é a parcimônia em aceitar e acreditar que o Crato é um dos umbigos do mundo. Talvez a maconha e o cachaça que o senhor habilmente inseriu em seu texto, tenha deixado a escrita pobre de idéias. O fato é que o próprio Crato torna-se a torre de marfim, o que é provado quando o senhor sai em defesa do bairrismo apavonado e piegas do senhor D. Mendonça. Quanto às esferas, eu posso afirmar, o grande feito é superá-las. Esse é o nosso grande equívoco, acharmos que temos uma elite culta, ou pior ainda, que temos um povão intelectual. Concordo com J. Flávio, quanto ao artigo de Bourdier, o que eu não concordo é ficarmos sentados em frente a um espelho quebrado.
Parabéns pelo texto, pois ele me impeliu ao debate. E que ele, o debate, sobreviva sempre.
Um abraço.
Leonel: o crédito pelo estímuilo ao debate é todo teu. Algumas postagens abaixo abriste a tese, fizeste o teste, abriste o verbo. Mostra uma fraqueza inicial, minha, além de amar o Cariri, um amor à distância e portanto de certa forma tendente a idealizações, sempre busco compensar com a racionalidade sem estados alterados da mente em porções adictas. Meu defeito: deixar transparecer para você que o Crato é um dos umbigo do mundo. A esfericidade não é a umbilical, é aquela em que todas os pontos têm a mesma distância em relação a um ponto interior, mas apesar disso, como a terra, tem dois pólos. A tese é que nela todos os pontos cabem, não acho que tenha escorregado em bairrismo, exatamente ao contrário, tudo é vivo, nada se congela. Sinceramente Leonel, eu achei que você foi além do texto nele não achei elite culta e povão intelectual ao contrário, imagino o protagonismo social para abertura da identidade das cidades (mas considero a inserção merecedora de uma boa análise de tua parte). Agora Leonel vou expor uma coisa que precisa ser testada na realidade: o Cariri, centro dos sertões, tem uma rara cultura ainda não exposta à produção litorânea do Ceará. Isso eu acredito, isso poderá ser uma diferença para identidade do Estado, mas é uma condicional. Nada está posto como líquido e certo. Por último: os dois lados, não os dois pólos. Pois bem Leonel me viste em defesa de bairrismo e te puseste em luta contra um personagem atuante da região,o Dihelson Mendonça. Por isso queres lutar contra a idéia do umbigo (não de esferas isso não cabe no que já entendi do teu universo intelectual), queres a superação de um certo ufanismo regional que acha tudo maravilhoso e o melhor dos mundos. Nisso eu espero excelentes análises tua, nisso eu confio que teremos muito que aprender. Textos ricos em idéias, instigantes e não empobrecido por metáforas embriagadas. Como bem o dizes o debate é um grande instrumento de vida para o nosso espaço-tempo.
Gostei das ironias e do cuidado de não ir muito além do necessário.
Abraços.
José do Vale Pinheiro Feitosa
Vinícius Leonel: esqueci-me de dizer-te. Preparei o texto trabalhando com algumas visões em torno do teu e dos comentário do Lupeu. Concordo com você que precisa enriquecer-se de mais idéias. Mas é certo que nos compreendemos.
Caro José do Vale,
é com satisfação que leio a sua resposta, muita elegância e sensatez, é isso que eu espero em um verdadeiro pensador. Quanto às ironias e às desqualificações às suas idéias é apenas uma questão de estilo e de urgência. Quanto às esferas eu tenho conhecimento a partir dos conceitos de Jung, Vico e do próprio Ítalo Calvino, no entanto a provocação é perfeita para um debate, como diria Rolan Barths. E que tenhamos outras oportunidades de divisarmos a realidade e a surrealidade, constantes em alguns artigos publicados no blog. Quanto ao meu ataque ao ufanismo e o bairrismo de D. Mendonça, se restringe apenas ao campo das idéias, nada pessoal, muito menos à atitude de empenho dele em termos uma cultura melhor gerenciada.
Grande abraço.
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