As marchinhas de carnaval traduziam o Brasil a cada ano. O que se tornava um traço da cultura, um evento marcante, o diálogo dos contrários da vida pública, aparecia nas marchinhas. O mais importante de tudo, apesar de escandalizar algumas famílias e setores religiosos, as marchinhas perfuravam o cinismo social com mais força que bala de canhão. Por isso mesmo evoluíam. A cada período tinha um foco, era uma forma geral de se comunicar. Era uma forma em que a comunicação não era tão privada, tão como agora por blogs, chats, colunas de jornais, era aquilo que nem mais o Jornal Nacional da Globo consegue: ser universalmente brasileira.
Eram temáticas. O tema da ocasião. Poderiam começar pelo próprio carnaval: "Já faz um ano que eu conheci você, foi pelo carnaval, foi pelo carnaval, e desde então fiquei sabendo o por quê, de todo o meu mal, de todo o meu mal". O compositor quase sempre era homem e como é de se esperar, o tema era a mulher: "Anoiteceu eu sinto no ar, um cheiro de mulher, é o cheiro de flor". Qual brasileiro já não ouviu esta e com freqüência a cantou a plenos pulmões: "Até amanhã, se Deus quiser, se não chover, eu volta pra te ver, oh mulher." E por falar em mulher tem a do compositor e tem as outras e como fica na hora de decidir? "Tá em cima da hora, nega não chora que eu vou me embora. A batucada me chamou, a lua lá no céu já brilhou, é o samba que manda eu vou, eu vou." Mas claro que poderia ir com ela: "Quer ir mais eu vamos, quer ir mais vambora, vambora, vambora sem demora, deixa a roupa na corda que não vai chover agora".
Um compositor achou um tema. Explodiu na avenida e tomo mundo pegou o trem: "Mamãe eu quero, mamãe eu quero, mamãe eu quero mamar, dá a chupeta, dá a chupeta, pru bebé não chorar". Alguém fez o retorno: "Já andas muito grande, para implorar, mamãe eu quero, eu quero, eu quero mamar. E não te dou a chupeta não adianta chorar". O tema infantil entrou definitivamente no carnaval: "Não chora bebé, não chora bebé, que a vaca preta desta vez só dar café". "Eu vou de toca de chupeta e camisola, ai ai mamãe, ai ai papai, eu vou bancar beber garape eu vou berrar até ganhar um cadilac." "Bicho papão, bicho papão, segura esta pequena que roubou meu coração. Roubou meu coração e botou juntinho ao seu, misturou o meu e o dela e eu não sei qual o meu." Ou então: "Menina chorona, ué, ué, o que foi que aconteceu, ué, ué, tua mãe te bateu, o papão te papou, gato preto te mordeu, teu amor te abandonou." E põe duplo sentido nisso tudo.
Uma mistura vertebral. De raiz como dizem. Do cerne da questão que mistura samba, cabrocha, morena ou mulata: "Para fazer meu samba, não tirei diploma. Cabrocha bonita, na vila, na roça, tem aroma". E até a elite nas páginas de O Cruzeiro, sem contar Di Cavalcanti descobriram a mulata: "mulata você é nacional, produto inesgotável da nossa capital. Pela mulata da nossa terra, o Brasil inteiro declara guerra". "Nero botou fogo em Roma, você incendiou meu coração. Dizem que Nero era louco, por você mulata fiquei louco de paixão". "Cuidados com esta morena, que ela não sopa não, zombou do meu amor, sorriu da minha dor, não teve pena do meu coração". "Quem sabe, sabe, conhece bem, como é gostoso gostar de alguém, ai morena, deixa eu gostar de você". "Por um carinho teu minha cabrocha eu vou até ao Irajá, que me importa que a mula manque, eu quero é rosetar."
Mas o Brasil, da cor de anil, múltiplo como uma policromia cantava as outras mulheres: "Paulistinha queridinha qual é tua cor, que tanto disfarça com teu pó de arroz, não és loura e nem morena, nem tens nada de mulata, paulistinha querida, a tua é cor é "trinta e dois". No carnaval era a vez da Loura: "Lourinha, Lourinha, se esqueceram de você, cantaram a branca, a morena e a mulata, mas eu resolvi não lhe esquecer". E veio o genial Lamartine e faz o nonsense: "Dá cá o pé ó Loura, lourinha. Dá cá o pé ó Loura, lourinha, pois este ano passaste o pé na moreninhal".
Num determinado ano as balzaquianas se tornaram moda. A mulher dos trinta foi exaltada em prosa e verso. Foi cantada tanto em canções do meio de ano como no carnaval: "Não quero broto, não quero, não quero não, não sou garoto para viver mais ilusão. Sete dias da semana eu preciso ver minha balzaquiana. O francês sabe escolher por isso ele não quer qualquer mulher, papai Balzac já dizia, Paris inteiro repetia, Balzac tirou na pinta, mulher só depois dos trinta."
E de repente a juventude das mocinhas dos bailes do municipal matava os homens de tanto amor até quarta feira de cinzas: "Prá onde você for eu vou atrás, seu rebolado é bom demais". "Olhe o rebolado que ela faz. Não posso mais eu vou atrás, pra ver." "Garota você é uma gostosura, foi proibida pela censura. Sai de perto de mim, olhar pra você eu não posso, me segura que vou ter um troço". "O que é meu é teu, o que é teu é meu. Tu és Julieta e eu sou Romeu. "Garota do Ipê, eu vou pular só com você. Se você chegar rouxinha, no meu carnaval, eu vou tirar casquinha, de você no Municipal". "Ulá Ulá você é mais você com o umbiguinho de fora garota de Saint Tropez. Laranja da Bahia tem um umbiguinho de fora, por que é que você Maria, escondeu o seu até agora".
Afinal o carnaval era como a vida todo mundo "Sassaricando, Sassaricando, todo mundo leva a vida no arame, sassaricando a viúva o brotinho e a madame, o velho na porta da Colombo, é um assombro, sassaricando".
Os rapazes mudam de porte, mais porção mulher, ousam na cabeleireira e no ano seguinte a marchinha noticia: "Olha o boi! Da cara preta. Olha o boi! Da cara preta. Coitado do Valdemar. Tá dando o que falar. Comeu carne de boi, falou fino e deu para se rebolar". "Sapato sem meia, calça apertada, cabelo de lado, esse cara é transviado". "Olha a cabeleira do Zezé será que ele é. Será que ele bossa nova, será que ele é Maomé, dizem que ele é transviado, mas isso eu não sei se ele é. Corte o cabelo dele, Corte o cabelo dele". Esta fez um sucesso em moto perpétuo e logo alguém falou no tema: "Deu cupim na cabeça do Zé. Deu, Deu. O azar não é meu nem seu, mas o Zé cabeçudo que é, quer, quer, uma mulher pra fazer cafuné".
E os costumes como é que ficavam? O lança perfume corria solto nos salões e logo começou a questão de se controlar os costumes na brincadeira. Alguém estimulava: "Oi abre alas que eu quero passar, eu sou da turma do bota pra quebra". "Cutuca, cutuca, cutuca, vamos todos cutucar. Cutuca, cutuca, cutuca, quem não gosta de brincar". "Jogaram pó de mico no salão, hei, que confusão, eu pulo, pulo, pulo, digo até não sei o quê, eu sei que pulo, pulo, e não danço com você". E a repressão se instalava: "Me dar um lenço Mandarim. Bote um pouquinho deste cheirinho prá mim. Bote, bote, bote mais um bocadinho, com este cheiro eu vou pru céu devagarinho". "O Coronel não quer que a gente cheire, sua excelência tem razão como ninguém, mas eu só peço Coronel que não se zangue se eu der um cheiro no cangote do meu bem".
Como é que fica? Sempre a mulher. Agora com nome próprio e uma paródia para dar curso ao decurso. "Se você fosse sincera, ô, ô, Aurora. Veja só que bom que era. Ô, ô, Aurora". "Maria cachucha com quem dormes tu? Eu durmo com um gato, um gato que come urubu". "Zazá mora num apartamento num apartamento na avenida Mem de Sá, e vi que oi morena, mas dizem que não sabe amar. Zazá não gosta fumar, mas tem um cinzeiro na sala de jantar. No seu apartamento tem tudo de primeira, tem rádio, kitnet, geladeira, mas todo mundo quer saber o que é que há com o cinzeiro da Zazá". Duplo sentido, como se viu, é coisa velha. "Janete, Janete, Janete, chega de fita venha me ver, eu sou também dos filmes do Maurice, oh Janete, Maurice Chevalier". "Brigitte Bardot, Bardot, Brigitte beijou, beijou, lá dentro do cinema todo mundo se afobou. Bebê, Bebê, Bebê, porque é que todo mundo olha tanto pra você. "Eu vou mandar prendar esta negra Rigoleta que me fez uma falseta e me desacatou por que não lhe dei o meu amor. Isso é conversa pra doutor". "Sou eu sou eu que vou batendo surdo, de porta estandarte é a Rosalina que vai, mas vou prevenir se eu não sair, Rosalina também não sai".
E os amores perdidos. Aqueles que tão se esforça para conquistar. Tudo isso é carnaval: "Água mole em pedra dura, tanto bate até que fura. Eu hei de me bater, até me pertencer, o coração, desta criatura". "Juro, nunca mais tive alegria, depois daquele dia, em que abandonei, quando eu me vi sozinho, sofri tanto sem o teu carinho". "Eu fiquei naquela base, depois que ela me deixou". "Ai não posso mais sofre, ai não posso mais amar, aquela que me acompanhava na minha jornada partiu para onde, não sei, como vou chorar, se eu nunca chorei". Nesse meio tempo um samba do Lupicínio Rodrigues fez sucesso e no carnaval foi cantada e decantada como estes dois: "Lá vem você me falar daquela mulher que lhe abandonou". "Você não tem razão para reclamar por causa daquela mulher nós não vamos brigar. Se ela é sua, pode levá-la consigo, prefiro perder a mulher do que perder o amigo".
O triângulo amoroso entre Arlequim, Pierrô e a Colombina penetraram profundo o carnaval brasileiro. São símbolos gerais da humanidade e um roteiro de expressão teatral que vem desde a renascença italiana. Passou pela comédia francesa se tornou nos amores passageiros do carnaval. "Colombina, Colombina, o seu primeiro amor abandonou. Triste, chorando na rua, o pobre Pierrô ficou". "Ai que saudade que eu tenho, do Arlequim, do Pierrô, da Colombina fingida, do tempo em que a vida era sempre uma flor"r. "Um pierrô apaixonado que vivia só cantando, por causa de uma Colombina, acabou chorando, acabou chorando. A Colombina entrou no botequim, bebeu, bebeu, saiu assim, assim, dizendo Pierrô cacete vai tomar cacete com o Arlequim".
O morro carioca. No carnaval foi e é o local de sua realização. O canto no mundo em que o Brasil e suas marchinhas aconteciam, seu grito de dor, seu grito de vida por que não? "Aquele mundo de zinco que é Mangueira, desperta com o apito do trem. Uma cabrocha, uma esteira, um barracão de madeira, qualquer malandro em Mangueira tem". "Ai barracão pendurado no morro e pedindo socorro à cidade aos seus pés. Ai barracão tua voz eu escuto, não te esqueço um minuto, por que sei que tu és, barracão de zinco tradição do meu país, barracão de zinco pobretão infeliz". "Se a rádio patrulha chegasse aqui agora, seria uma grande vitória, ninguém poderia correr. Agora que eu quero ver, quem é malandro não pode correr". "A minha vida é bem fácil de contar, um abraço no almoço, outro abraço no jantar. E mais a tarde natural bem que eu divido natural que eu divido. Quando a fome tiver insistido".
As diferenças sociais. Aqueles que enriquecem sem que se saiba como e nem de onde vem. Ao lado disso o pendura geral da vida do pobre e da classe média: "Você diz que tem um carro, que tem casa e geladeira, tudo a custa do batente. Me contaram diferente". "Trabalhei o ano inteiro, juntei algum dinheiro e dei entrada do papel na caixa, pra ver se saia a minha casa própria, mas esta vida é um mistério, casa de pobre nem no cemitério". "Eu tenho inveja dos mocinhos da avenida, de ombros largos e elegância nos quadris, roupa lavada, casa, luz e até comida, tudo de graça oh que gente tão feliz. Infelizmente eu trabalho muito. Infelizmente eu trabalho muito".
O carnaval era crônica e a narrativa da vida nacional. Política, social e econômica. Vejam a pérola desta marchinha feita algum tempo antes da revolução de 30 relatando o movimento dos personagens: "Quando eles viram que o Barbado não dormia, deu-se a melódia, na minoria, Antonio Carlos quando entrar já não podia, para o mineiros então dizia, Harmonia, harmonia, chamem o Getúlio que é uma ducha de água fria. Harmonia, harmonia, chamem o Getúlio que é uma ducha de água fria. Enquanto isso, seu Getúlio já escrevia, tudo às avessas, Virgem Maria, Escrita em turco aquela carta parecia, Nas entrelinhas é que se lia. Harmonia, harmonia, Quer o Catete, mas fingir que não queria. Harmonia, harmonia, Quer o Catete, mas fingi que não queria.Zé Bonifácio não perdeu ainda a mania De que é o barbado da confraria. Toca pro pau, mas o paulista que o espia. Lá bem de cima, baixo assobia. Harmonia, harmonia, Quer o São Paulo casadinho com a Bahia. Harmonia, harmonia, Quer o São Paulo casadinho com a Bahia. Eles pensavam que a pimenta não ardia e que seu Júlio não se mexia. Mas vendo Júlio com um bruta maioria Getúlio Vargas lhes repetia: Harmonia, harmonia, Dezessete contra três é covardia. Harmonia, harmonia, Dezessete contra três é covardia.”
Eis a prova de que situação e oposição são intercambiáveis em práticas e discurso. A diferença se resume ao ponto em que estão. Quando a UDN finalmente viu pelo prestígio popular de Jânio Quadros a oportunidade de vencer as eleições, saiu esta marchinha que é um primor do cinismo nacional. Cinismo do tipo aos amigos tudo aos inimigos a lei: "O homem da vassoura vem aí, já sei pra onde vou com a família. Eu só queria, eu só queria, ver o homem da vassoura em Brasília".
Nenhum comentário:
Postar um comentário