
O catador de lixo José Carlos Ferreira de Sousa, de 39 anos, morava no Jangurussu, um dos bairros mais pobres de Fortaleza. Adoeceu, no último dia cinco de março, e procurou o Frotinha de Messejana, onde foi medicado e liberado, à noitinha, mesmo sob os protestos da irmã que não o achava recuperado suficientemente. De volta à casa, foi encontrado morto, na madrugada do dia seguinte, possivelmente por complicações da Dengue. Até aqui o ouvinte, perplexo, há de dizer que não existe notícia. Pobre morrer sem assistência médica neste país não é exceção mas regra. Mas tão próximo da Semana Santa, a Via Crucis de José Carlos não podia parar por aí. A miséria não tem limites para o infortúnio. A família sem posses para contratar uma funerária, tentou retornar com o corpo para o Frotinha, no intuito de conseguir o Atestado de Óbito: em vão. Fortaleza, uma megalópode de mais de três milhões de habitantes , simplesmente não possui um Serviço Público para o traslado de pessoas falecidas de morte aparentemente natural. Uma líder comunitária local deu então a idéia de transportar o corpo do catador, na sua própria carrocinha. E lá saiu aquele cortejo sui generis pelas ruas da cidade, com o corpo de José exposto a um sol escaldante até o hospital, quando, impedidos de entrar, foram informados que teriam que se dirigir ao Serviço de Verificação de Óbitos , na distante BR 116. Mais uma vez o tenebroso cortejo pôs-se a cruzar ruas , sol a pino, diante dos olhos curiosos de transeuntes apressados e indiferentes. José Carlos passou a vida a catar as escórias que escorriam dos esgotos da nossa Sociedade e conseguiu arrancar de tão pouco a sua subsistência, mal percebia que para o mundo à sua volta ele tinha o mesmo valor nominal dos objetos que transportava. Talvez por isto mesmo tenha simbolicamente fechado as cortinas deste mundo na mesma carrocinha que usava para transportar os outros dejetos.

Existe um fio condutor aparentemente invisível entre as duas histórias verdadeiras e tão simbólicas. Em ambas o assunto central é Lixo. A borra final da nossa modernidade.Lixo humano que se foi acumulando nas margens das grandes cidades e que de repente começa a poluir nossas mentes e nossos olhos e que precisa de alguma maneira ser incinerado. Igualzinho ao outro que se acumula nos grandes aterros sanitários e que fechamos o nariz ao passar por perto, com medo de contágio. A elite que se ruboriza ao falar do Holocausto, na Segunda Grande Guerra, não tem nenhum pejo em preparar uma Solução Final para aquilo que considera a ralé, a escória, o lixo último da nossa sociedade de consumo.

J. Flávio Vieira
Um comentário:
Esse seu olhar sobre as histórias hediondas da sociedade é muito profundo. Uma nalogia mais do que providencial, digo, principalmente para aqueles que põem na boca o nome de Jesus, na forma de um guerreiro das cruzadas modernas, em busca de salvação própria, através do subtérfugio da catequese e dos purismos celestiais. Não refugo a idéia de uma revelação, por demais necessária, mas acredito muito mais na necessidade de converter as nossas próprias tripas, para que a bosta ali residente em condomínio, sirva pelo menos como adubo.
Abraços
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